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Discursos na TV e a História do Pensamento Político

Atualizado: 5 de out. de 2022

Bárbara Dantas


* Se precisar citar, tê-lo como referência, seguir:

DANTAS, Bárbara. “Discursos na TV e a história do pensamento político.” In: DANTAS, Bárbara; FERNANDES, Rafael Salvan. Paradigmas da Filosofia Política: estudos aplicados. Vila Velha-ES: Balsamum, 2018. Disponível em: https://www.barbaradantas.com/post/discursos-na-tv-e-a-hist%C3%B3ria-do-pensamento-pol%C3%ADtico


Baixe o PDF da publicação aqui.


RESUMO: Este breve estudo faz parte de um conjunto de reflexões acerca da política e de sua História, das reverberações históricas da política na atualidade. Volvemos nossa atenção aos apelos de filósofos dos anos iniciais da modernidade, ditos pensadores políticos, no que tange à retórica e à manutenção de um estado particular, individual, em detrimento – na maioria das vezes – da manutenção do Estado, esta instituição tão presente em nossas vidas.


PALAVRAS-CHAVE: Estado. Maquiavel. Bruneto Latini. Retórica. Política.


RESUMEN: Este breve estudio es parte de un conjunto de reflexiones acerca de la política y de su historia, las reverberaciones históricas de la política en la actualidad. Volvemos nuestra atención a los llamamientos de filósofos de los años iniciales de la modernidad, dichos pensadores políticos, en lo que se refiere a la retórica y al mantenimiento de un estado particular, individual, en detrimento -en la mayoría de las veces - del mantenimiento del Estado, esta institución tan presente en nuestras vidas.


PALABRAS CLAVE: Estado. Maquiavelo. Bruneto Latini. Retórica. Política.


ABSTRACT: This brief study is part of a set of reflections about politics and its history, the historical reverberations of politics today. We turn our attention to the appeals of philosophers of the early years of modernity, so-called political thinkers, as regards rhetoric and the maintenance of a particular individual state, individual, to the detriment - most of the time - of maintaining the State, this institution so present in our lives.


KEYWORDS: State. Machiavelli. Bruneto Latini. Rhetoric. Politics.



A POLÍTICA E SUA HISTÓRIA


Já é prática quase comum entre os historiadores atuais partirem do presente para o estudo de fatos do passado. Georges Duby (1919-1996) conclamou os pesquisadores a trabalharem dessa forma: “para que escrever a história, se não for para ajudar seus contemporâneos a ter confiança em seu futuro e a abordar com mais recursos as dificuldades que eles encontram cotidianamente?”.[2]

No entanto, neste trabalho, pretendo ir além: a proposta principal deste breve estudo é incitar o leitor a associar a linha de pensamento de alguns teóricos dos anos finais da Idade Média (entre os séculos XI e XIII) e, principalmente, do Renascimento italiano (entre os séculos XIV e XVI) com os discursos políticos que assistimos, costumeiramente, na TV. Porém, nunca é demais lembrarmos que o intuito deste trabalho não é realizar generalizações históricas ou afirmações categóricas, mas sobretudo, incitar a reflexão sobre o nosso papel tanto como cidadãos brasileiros quanto como eleitores e, por isso, responsáveis pelos governantes que elegemos para nos representar.

Nicolau Maquiavel (1469-1527) será o teórico mais lembrado neste trabalho, tanto pelas sui generis obras que produziu, quanto por seu caráter controverso enquanto um dos pais da teoria política moderna. Neste prólogo, já faço minhas as palavras do célebre pensador político ao citar duas de suas ideias a respeito da importância dos estudos históricos para entendermos muitas das questões e problemáticas da vida contemporânea.

Nos seus Discursos (obra que perde em fama para O Príncipe,[3] mas que se iguala em erudição e sensatez) Maquiavel nos instrui a “tirar essas lições práticas que se deveria procurar no estudo da história” e, para isso, “quem tencionar antever o que há de ser deve meditar sobre o que foi, pois tudo o que sucede no mundo exibe uma genuína semelhança com aquilo que sucedeu em tempos antigos”.[4]



A CORRUPÇÃO


Maquiavel foi um dos primeiros pensadores da Renascença a pensar de forma profunda o papel da corrupção na política.[5] Mas, não foi o único. Sua fama se deve à forma direta e sem rodeios de escrever a respeito. Logo na abertura do capítulo IV de suas Histórias Florentinas (1520), por exemplo, Maquiavel faz uma acusação contra a corrupção que envolvia todos os níveis da estrutura social de Florença no Quatrocentos: enquanto a população se esbaldava na licenciosidade, os nobres “promoviam a escravidão” e, pior, ambos não se interessavam com o bem estar geral da República.[6]


Imagem 1: Nicolau Maquiavel. Escultura em mármore. Galleria degli Uffizi. Florença – Itália.


Volvemos nosso pensamento para a atualidade, Tempo (especialmente, no contexto brasileiro) envolto em denúncias de atividades ilícitas e corruptivas vindas daqueles que foram eleitos pelo povo para cuidar dos interesses do povo. Estas acusações são transmitidas pela TV em paralelo com diversos discursos de políticos.

Nesta relação entre povo e governante, Maquiavel nos alertou, mais de 500 anos atrás, de que a licenciosidade popular andava de braços dados com uma nobreza que escravizava. Esta proposição muito se encaixa nos dias de hoje quando nos deparamos com os péssimos índices da educação brasileira, um povo que lê e estuda cada vez menos e que prefere se esbaldar nas músicas mais populares (nem sempre de boa qualidade) e nos jogos de futebol cada vez mais violentos.


Em contrapartida, aqueles que hoje têm o papel que os nobres tinham na época de Maquiavel, promovem a escravidão. Boa parte de nossos governantes a promove quando envolve a população em taxas tão pesadas que a vida torna-se quase uma atividade cotidiana de manter apenas a capacidade de se alimentar, vestir e morar precariamente. E as denúncias diárias mostram que, além de sobretaxar a população, muitos governantes também são afeitos à corrupção para adquirir proveitos particulares sobre um bem que é público, a máquina estatal sustentada pelos impostos.


EM PROL DE QUAL “ESTADO”?


A teoria política dos renascentistas tem muito a esclarecer, também, a respeito do valor dado aos interesses pessoais em detrimento do interesse coletivo. Nesse sentido, Bruneto Latini (1230-1294) afirmou em seus Livros do Tesouro[7] que “se cada qual seguir sua vontade apenas individual, o governo das vidas humanas será destruído e totalmente dissolvido.” E, assim, nos deparamos com a diferença entre um “estado” e um “Estado”. Etimologicamente, a palavra “estado” pode ter dois significados: quando a usamos sem destacar a maiúscula, trata-se da condição de um determinado ser, de seu “estado” naquele momento. Contudo, quando destacamos a maiúscula em “Estado” é costume associá-lo a nações, países e governos em geral.


Imagem 3: Praça dos Três Poderes, Brasília.


Maquiavel usou diversas vezes este termo em dois dos seus livros: O Príncipe e Discursos. Para Quentin Skinner,[8] o pensador florentino utilizou a palavra como “estado”, ou seja, os governantes aos quais Maquiavel recorreu como exemplos que legitimavam suas premissas políticas deveriam (por todos os meios) “conservar seu estado” de governante. E não, necessariamente, trabalhar em prol do Estado, a República.



O FACCIOSISMO POLÍTICO


E hoje? O político brasileiro defende “seu estado” ou “seu Estado”? Embora os debates acirrados entre as “bancadas parlamentares” ou os impropérios e provocações trocados entre membros de diferentes partidos políticos denotem o caráter democrático da política brasileira, devemos pensar se não se trata, na verdade, do que os primeiros pensadores políticos da modernidade nomearam como um facciosismo político: um quadro no qual as desavenças se tornam rixas e estas descambam em brigas. Colaboram, por fim, com um regime político onde existe mais divisão do que união.[9] Bruneto Latini[10] adverte-nos de que, tanto na política quanto na vida, “não nascemos apenas para nós mesmos” e “devemos considerar a vantagem comum acima de qualquer outra coisa”.


A ORATÓRIA


A oratória fazia parte de dois tipos de ensino que desenvolveram teorias políticas sobre as benesses de governos republicanos frente aos regimes monárquicos e remontam aos séculos XI e XII, ou seja, à Idade Média no Ocidente Europeu. Uma delas era o ensino fundamentado na filosofia escolástica das escolas e universidades catedralícias, principalmente, nas francesas. A outra se originou nos debates e aulas ministradas nas universidades italianas com base nos estudos gerais de retórica, matéria tão cara aos pensadores políticos daqueles e dos vindouros tempos.[11]

Nos cursos de direito, o estudo da retórica capacitava quem o dominava a escrever cartas oficiais e outros documentos similares com clareza na forma e capacidade de persuasão no conteúdo (idem, p. 50). Um professor de retórica, da faculdade de Bolonha no séc. XII, por exemplo, intitulava-se como dictator, ensinava a Ars Dictaminis.[12]


Imagem 4: uma das salas da Biblioteca da Universidade de Bolonha – Itália.


Ou seja, a “arte de bem falar” se originou de instrutores e alunos que se dedicaram à “arte de bem escrever”. No séc. XIII, aos primeiros manuais dos dictatores que abordavam esquemática e modelarmente a forma de escrever diferentes epístolas, foram acrescidas opiniões em forma de crenças políticas que eram debatidas na época.[13]

Frases de impacto com muitas proposições exclamativas e elaborados intervalos provocativos são o cerne da retórica utilizada pelos primeiros dictatores em seus textos. Deles, nasceu o discurso político com o fim de persuadir o ouvinte. E disso, convenhamos, muitos políticos são especialistas. Dominam, plenamente, tanto a arte do bem falar quanto a de persuadir. Ao assistir na TV trechos de discursos proclamados nas Câmaras dos Deputados ou do Senado, confesso que me admiro com tamanha capacidade de falar e, principalmente, de se fazer ouvir.

Contudo, para Brunetto Latini, existiam conexões profundas entre as “ciências do falar e do governar bem”.[14] Então, devemos pensar que esta importante proposição política existiu em outro tempo e lugar que não na contemporaneidade? Ou que esta afirmativa não representa a verdade e se se reveste de pura falsidade retórica? Porque a classe política atual está tão mal vista?


Imagem 5: charge publicada no site do jornal amazonense A Crítica em 2014.


A classe política brasileira, de modo geral, parece que criou o costume de falar bem e de não governar bem. Mas, a população brasileira (com a ajuda das transmissões de TV) já mostra que está farta da falsa retórica de políticos. Em algumas regiões, o eleitorado excluiu os candidatos que fizeram promessas vãs ou sem sentido concreto. Como, por exemplo, ocorreu nas eleições estaduais no Amazonas em 2014: segundo o jornal amazonense A Crítica, a população não elegeu nem reelegeu políticos que utilizaram na TV discursos em torno de temas que deram maior ênfase em mostrar a violência e impunidade das ruas. O texto jornalístico considerou um avanço no pensamento do eleitorado e acusou aqueles políticos de usarem “discursos rasos”.[15]



A VERDADE E A LIBERDADE


“Sem boa-fé e lealdade, não se pode sustentar o que é certo.”.[16] É o mesmo que honestidade e, na linguagem política, probidade: a observância rigorosa dos deveres, da justiça e da moral.[17] Que os governantes de nosso país se portem honestamente é uma das maiores quimeras da população brasileira. Mas, devemos lembrar que, uma postura honesta é construída, em grande parte, por uma educação de valores morais e cívicos que remontam aos cuidados familiares, estendem-se à escola e à posterior vida social e laborativa.

Em seus Discursos, Maquiavel (apesar de ter se tornado adjetivo pejorativo no que tange às doutrinas políticas por sua postura mais pragmática em relação às realidades da vida em sociedade e para a manutenção do poder) faz vir à nossa memória a lembrança de que a educação dos filhos deve primar pelos “bons exemplos” como forma de bem encaminhá-los para a vida cívica.[18] E a verdade se tornará o caminho para a liberdade, em contraponto à mentira, que é o caminho da libertinagem.



APONTAMENTOS FINAIS


Ao recordarmos - mesmo que brevemente - os apelos de pensadores políticos que viveram mais de 500 anos atrás, notamos (com uma ponta de melancolia) que as questões levantadas por eles continuam presentes na atualidade. Questões que permanecem, por vezes, insolúveis. O bem público tem estado sob um nevoeiro espesso imposto pela dissensão e improbidade da vertente política. O povo brasileiro, à mercê destes tempos brumosos, necessita ter uma postura mais crítica e distinguir a boa da má retórica. A transmissão de discursos pelas emissoras de TV democratizou a formação de opinião, falta-nos agora fazer jus a esta oportunidade e proclamarmos mais firmemente nosso repúdio ao mau uso da retórica.



REFERÊNCIAS


BANKER, James R. “The Ars Dictaminis ans rhetorical textbooks at the Bolognese University in the fourteenth century”. In: Medievalia et Humanística, n. 5, 1974, p. 153-168. Internet: http://interclassica.um.es/investigacion/hemeroteca/m/medievalia_et_humanistica/numero_5_1974

BONADEO, Alfredo. Corruption, conflict and power in the Works and times of Niccolò Machiavelli. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1973.

DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: Ed. UNESP, 1999.

GILBERT, Feliz. “Machiavelli’s Istorie fiorentine.Studies on Machiavelli. Florença: Ed. Myron P. Gilmore, 1972, p. 75-99.

LATINI, Brunetto. Li livres dou tresor (Os livros do tesouro). Berkeley: Editora Francis J. Carmody, 1948.

MAQUIAVEL, Niccolò. The Discourses (Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio). Harmondsworth: Ed. Bernard Crick, 1970.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Record, 2014.

MURPHY, James J. Rhetoric in the Middle Ages. Berkeley: University of California Press, 1974.

PRIBERAM. Dicionário da Língua Portuguesa. Internet: www.priberam.com.br

SKINNER, Quentin. As Fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.



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Notas:

[2] DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: Ed. UNESP, 1999, p. 9.

[3] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Record, 2014.

[4] Id. The Discourses (Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio). Harmondsworth: Ed. Bernard Crick, 1970, 99/517.

[5] BONADEO, Alfredo. Corruption, conflict and power in the Works and times of Niccolò Machiavelli. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1973, p. 1.

[6] GILBERT, Feliz. “Machiavelli’s Istorie fiorentine.Studies on Machiavelli. Florença: Ed. Myron P. Gilmore, 1972, p. 1187.

[7] LATINI, 1948, p. 223.

[8] SKINNER, Quentin. As Fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 151.

[9] SKINNER, 1996, p. 68.

[10] LATINI, 1948, p. 291.

[11] SKINNER, 1996, p. 49.

[12] MURPHY, James J. Rhetoric in the Middle Ages. Berkeley: University of California Press, 1974, p. 213.

[13] BANKER, James R. “The Ars Dictaminis ans rhetorical textbooks at the Bolognese University in the fourteenth century”. In: Medievalia et Humanística, n. 5, 1974, p. 155. Internet: http://interclassica.um.es/investigacion/hemeroteca/m/medievalia_et_humanistica/numero_5_1974

[14] LATINI, 1948, p. 17.

[16] LATINI, 1948, p. 394.

[17] PRIBERAM. Dicionário da Língua Portuguesa. Internet: www.priberam.com.br

[18] MAQUIAVEL, 1970, p. 114.


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