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O Sistema Misto na Constituição de 1824: a justiça popular no sistema judiciário brasileiro

Atualizado: 5 de out. de 2022

Luiz Cláudio Moisés Ribeiro[1]

Bárbara Dantas

*Se precisar citá-lo, ter como referência, seguir:

DANTAS, Bárbara; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. "O sistema misto na Constituição de 1824: a estruturação de uma justiça popular no sistema judiciário brasileiro." In: DANTAS, Bárbara; ZANINI, Jefferson (org.). Globalização, Democracia e Sustentabilidade na Ciência Jurídica atual. Vila Velha-ES: Balsamum, 2019.


Baixe o PDF da publicação aqui.


RESUMO: Parece-nos um tanto comum a relação entre Justiça e Política. Contudo, esta é uma mentalidade contemporânea. Os governos democráticos destas primeiras décadas do século XXI têm sua origem mais demarcada nas novas experiências políticas e jurídicas ocidentais que pulularam a partir dos séculos XVIII e XIX contra o absolutismo das monarquias e a favor de regimes políticos que utilizassem de fato as opções mais democráticas oferecidas pelos governos representativos e eletivos. Este estudo pretende apresentar, de modo geral, como justiça e política dialogaram no que tange à Carta Constitucional de 1824, nossa primeira Constituição. Mais especificamente, estas análises apresentarão como o “regime misto” se fez presente na instituição do “poder moderador”, no âmbito político; e do “juiz de paz eletivo”, no âmbito jurídico. Ambos estavam presentes na Constituição do Império do Brasil, outorgada por D. Pedro I no ano de 1824 e, para a qual, o Marquês de Caravelas se tornou figura de destaque.

PALAVRAS-CHAVE: Constituição de 1824. Poder Moderador. Juiz de Paz. Marquês de Caravelas.


ABSTRACT: The relationship between Justice and Politics seems to us to be somewhat common. However, this is a contemporary mentality. The democratic governments of these first decades of the 21 century have their origin demarcated in the new western political and juridical experiences that swarmed from the 18 and 19 centuries against the absolutism of the monarchies and in favor of political regimes that actually used the more democratic options offered representative and elective governments. This brief study intends to present, in a general way, how justice and politics dialogued with regard to the Constitutional Charter of 1824, our first Constitution. More specifically, these analyzes will show how the "mixed regime" was present in the institution of "moderating power" in the political sphere; and the "elective justice of the peace", in the legal sphere. Both were present in the Constitution of the Empire of Brazil, granted by D. Pedro I in the year 1824 and, for which the Marquis de Caravelas became a prominent figure.

KEYWORDS: Constitution of 1824. Power Moderator. Justice of the Peace. Marquis de Caravelas.

RESUMEN: Encontramos en la relación entre justicia y política como algo común. Sin embargo, esta es una mentalidad contemporánea. Los gobiernos democráticos de estas primeras décadas del siglo XXI tienen sus orígenes más marcados en las nuevas experiencias políticas y legales occidentales que surgieron en los siglos XVIII y XIX contra el absolutismo y las monarquias, pero, en favor de los regímenes políticos que realmente utilizaron las opciones más democráticas ofrecidas por gobiernos representativos y electivos. Este estudio pretende presentar, en general, cómo la justicia y la política dialogaron con respecto a la Carta Constitucional de 1824, nuestra primera Constitución. Más específicamente, estos análisis presentarán cómo estuvo presente el "régimen mixto" en la institución del "poder moderador" en la esfera política; y el "juez electivo de paz" en el campo legal. Ambos estuvieron presentes en la Constitución del Imperio de Brasil, otorgada por D. Pedro I en el año 1824 y, por lo cual, el Marqués de Caravelas se convirtió en una figura prominente.

PALABRAS CLAVE: Constitución de 1824. Poder moderador. Juez de Paz, Marqués de Caravelas.


IMAGEM 1: Amaro do Amaral, Marquês de Caravelas, gravura, c. 1900.

A ideia de “governo misto” analisada no livro de Christian Edward Cyril Lynch (Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-836), publicado em 2014 pela Editora da UFMG)[1] se baseia na proposta política do constituinte José Joaquim Carneiro de Campos (1768-1836), também conhecido como Marquês de Caravelas, redator da Carta Constitucional de 1824 e importante figura política do Brasil Império entre as décadas de 1820-1830.


Apesar de não legar à posteridade nenhuma publicação, os discursos nas assembleias as quais fez parte são notáveis pela erudição, fortes proposições e irrefutáveis argumentos, como este longo – porém, magnífico – apelo à soberania do povo brasileiro em sua defesa da monarquia:


Só a nação possui realmente a soberania, porque só nela reside a reunião de todos os poderes soberanos. Ela nos delegou somente o exercício do Poder Legislativo e nos encarregou de formarmos a Constituição de um governo por ela já escolhido e determinado – pois, muito antes de nos eleger para seus representantes, tinha já decretado que fosse monárquico, constitucional e representativo o governo que a devia reger.[1]


Já o “sistema misto de administração judicial” foi analisado e contextualizado por Adriana Pereira Campos, Andréa Slemian e Kátia Sausen da Motta no livro Juízes de Paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império, publicado em 2017 pela Juruá Editora.[1] Apesar de ter seu recorte temporal e geográfico circunscrito ao Brasil Império, abarca os anos imediatamente posteriores à outorga da Constituição de 1824 e seus desdobramentos no âmbito judicial, mais especificamente no que tocava ao Judiciário (suas leis e práticas) e o papel do mais recente cargo instituído por lei em 1827, o “juiz de paz”.


Estas obras acadêmicas - afins com uma das correntes historiográficas brasileiras mais atuais e promissoras, a História Social das Relações Políticas – nos ajudarão a entender no que estas duas proposições (a política e a jurídica) se aproximaram e no que se distanciaram naquele período histórico, os primeiros anos do Brasil como país independente de Portugal. Com este fim, mostraremos as principais características de cada uma das publicações e, após, identificaremos como a política se uniu às instituições jurídicas (novas ou já estabelecidas) para ajudar a criar um universo governamental tipicamente brasileiro naquelas primeiras décadas do século XIX.

CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1824

O baiano Carneiro de Campos, personagem principal do livro de Lynch, foi um constituinte dos mais versados em Ciência Política e Direito Público. Em 1823 - e durante oito dias seguidos – redigiu a Constituição do Império do Brasil “sob as vistas” do Imperador D. Pedro I, já declarado como “Defensor Perpétuo do Brasil”.[1] Sua proposta constitucional o tornou famoso no meio político devido à clareza de suas premissas e à erudição de suas palavras. Por seu trabalho em prol do “Novo Reino do Brasil”, o então Visconde de Caravelas foi elevado ao título de Marquês de Caravelas e recebeu a Imperial Ordem do Cruzeiro:

pelos serviços prestados e pelo patriótico empenho que mostrou em querer salvar a nação das desgraças da anarquia, concorrendo com iluminado zelo para a segurança do trono e conservação do sistema constitucional.[1]

Com grande domínio das ideias ligadas à história da política e do direito, Carneiro de Campos utilizou seus conhecimentos para redigir uma Carta Constitucional que foi considerada como “uma das mais liberais”[1] dentre as muitas constituições promulgadas desde a segunda metade do século XVIII e por todo o século XIX, nas ex-colônias das Américas (Estados Unidos, na América do Norte; e as recém independentes colônias da América espanhola) e em território europeu (na França revolucionária, por exemplo):

A nossa primeira Constituição foi feita por um grupo no qual se destacou o Marquês de Caravelas, que foi o seu verdadeiro autor. Apesar de outorgada, foi a melhor Constituição brasileira. Muito flexível, permitiu a instauração do parlamentarismo. Tinha uma plasticidade que nenhuma outra teve depois dela. Foi a mais respeitada que tivemos e, quando findou, era exatamente a segunda Constituição mais antiga do mundo, depois da americana, se não considerarmos a Carta Magna, que não é escrita. Nem a França nem qualquer dos países europeus tinham uma Constituição mais antiga.[1]


IMAGEM 2: capa da Constituição do Império do Brasil de 1824.

As propostas constitucionais de Carneiro de Campos se basearam, inicialmente, nas definições dos três modelos de regime político propostos na obra Política, de Aristóteles, e na obra História, de Políbio.[1] O constituinte brasileiro reafirmou as premissas aristotélicas, mas afirmou que não passavam de “arquétipos políticos”, ou seja, modelos um tanto abstratos e, por isso, necessitavam se adequar às realidades sociopolíticas, culturais e econômicas de cada país:

As leis de um país devem ser acomodadas às circunstâncias em que ele se acha, devem ter estreita relação com seu tempo e os costumes dos seus habitantes.[1]

Neste sentido, Carneiro de Campos sugeriu e conseguiu instituir o “governo misto”[1] na Constituição Brasileira de 1824. Segundo Aristóteles, existiam três formas de governo:

· Monarquia, governo de um;

· Aristocracia, governo de alguns;

· Democracia, governo de todos.

Monarquia, Aristocracia e Democracia, todas se sujeitavam a uma ideia de História Cíclica.[1] Neste viés, e segundo a Teoria da História Cíclica, além da capacidade inelutável e inerente a todos os governos de se corromperem em algum momento, verifiquemos a seguir, segundo Aristóteles, no que se transformam as formas de governo acima citadas em caso de se desviarem do bem-comum:

· Monarquia se transforma em Tirania;

· Aristocracia se torna Oligarquia;

· Democracia decai para uma Demagogia.[1]

E o ciclo se perpetua no decorrer da História na seguinte forma:

Monarquia » Tirania » Aristocracia » Oligarquia » Democracia » Demagogia » ...[1]

Carneiro de Campos, na busca por fugir de um caminho político que parecia inevitável – para o legislador, a anarquia assolava os recém-independentes países da América do Sul - propôs uma nova forma de governo que se diferenciava das três formas de governo aristotélicas, ou melhor, era um melhoramento.[1] Encontrou na Inglaterra do século XVII em geral, e no contexto da Revolução Gloriosa (1688-1689) em particular, a resposta à sua quimera política para o então nascente Império brasileiro.[2]


Os ingleses, após intensas disputas, instituíram uma Monarquia Constitucional (ou Parlamentar) conhecida como um “governo misto”, no qual a figura do imperador se tornou a mantenedora dos costumes (consuetudines[3]) e da tradição para manter o país unido política e territorialmente: “Todavia, quando aponto a Inglaterra, não é em geral que adoto tudo que há neste país, mas sim o que é bom e nos pode ser aplicável”.[4]


Por outro lado, a Constituinte passou a velar pelo bom governo do rei por ser a “voz do povo”, tanto no executivo quanto no legislativo:

É necessário entender-se bem o que são garantias; são elas que seguram os direitos do homem. Não é a Constituição que os dá ao homem, que já os tem; a Constituição os assegura.[1]

Para o filósofo político irlandês, Edmund Burke (1729-1797), os sucessos da Revolução Gloriosa (ou Inglesa) distinguiram a Inglaterra em relação ao resto dos governos europeus que ainda padeciam lentamente sob as garras do Antigo Regime.[1]


O francês Charles de Montesquieu (1689-1755) notabilizou-se ao apresentar um tipo de governo instituído sob Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Monarquia Constitucional (ou Parlamentar) e Três Poderes, ordenamento político com os quais Carneiro de Campos, D. Pedro I e os demais constituintes de 1823 criaram a Primeira Constituição do Brasil:

O governo representativo é o governo do balanço: cada um dos poderes tem em si uma força de contrapesar os excessos do outro, e desta maneira se conserva o equilíbrio de todas as peças da máquina social. Nós devemos ter em vista sempre que a nossa Constituição adotou o elemento monárquico e que é necessário um corretivo que evite qualquer tentativa que tente a deprimi-la.[1]

Carneiro de Campos fez mais e, além dos ‘Três Poderes” dispostos por Montesquieu, fundamentou a Carta Constitucional de 1824 sob um “Quarto Poder, o Poder Moderador”, segundo as atribuições que Benjamin Constant estabeleceu em 1815 como as áreas de atuação do rei e ao qual o renomeado francês nomeou como o “poder neutro”.[1] Obrigação do imperador que, por isso, acumulou duas funções: uma como chefe do Executivo e outra como Moderador nas questões às quais o Legislativo não conseguisse chegar a um acordo.


A monarquia, pois, seria o baluarte sobre o qual a tradição e a modernidade aportariam em águas brasileiras. Segundo os padrões ilustrados da época, as recentes concepções políticas foram acompanhadas por novas visões para o Judiciário, âmbito ao qual se quis dar a garantia de plena independência. Desta forma, um sistema misto também foi introduzido na administração judicial por meio dos juízes de paz eletivos (artigos 161 e 162 da Constituição de 1824).[2]


“DUALISMO ENTRE CIÊNCIA E PRÁTICA”: OS JUÍZES DE PAZ


Por sua vez, Adriana Campos e colegas de pesquisa discutiram as diferenças e similaridades entre dois manuais para o ofício de “juiz de paz” no Brasil, publicados em 1829 por renomados políticos: o padre paulista Diogo Antônio Feijó (1784-1843) e o magistrado mineiro nascido em Ouro Preto, Bernardo Pereira de Vasconcellos (1795-1850).[3] Estes manuais foram publicados para auxiliarem a prática cotidiana daquela nova administração judicial promulgada em 1827 como Ato Adicional à Carta de 1824: “fortemente marcada por uma crítica à ineficiência e às corruptelas associadas aos magistrados e aos juízes”.[4] Este cargo foi criado para substituir o almotacel, o juiz de vintena e o juiz ordinário do período colonial.[5]


Apesar de manter a Monarquia como regime político no Brasil com a permanência do filho de D. João VI (D. Pedro I) e a consequente independência proclamada em 1822, os constituintes queriam unir a segurança do regime monárquico com as novas possibilidades do Liberalismo (maior liberdade possível para o comércio interno e externo, com pouca ou nenhuma intervenção do Estado) e trabalharam em favor de uma Monarquia Constitucional e Liberal para trazer ao Brasil os progressos econômicos advindos dos modelos da indústria europeia. Não escravista, as fábricas da Europa puderam acumular capital financeiro e humano:

A indústria [...] prosperou primeiro nas cidades, porque nelas também se estabeleceram a liberdade e a segurança, muito tempo antes que se afugentasse dos campos a escravidão, que opunha constantemente um obstáculo irresistível a toda a formação e acumulação dos capitais que, segundo a ordem natural, deveriam ser criados para se repartirem utilmente pelos mais ramos secundários dos trabalhos produtivos.[1]

Os juízes de paz, naquele contexto, tinham o papel de aproximar as decisões junto ao povo. Eram escolhidos entre os “homens bons”[1] nas vilas e comarcas. O foco de suas atividades era promover a conciliação entre partes litigantes. O juiz de paz, no Brasil, era eleito por voto direto em um sistema parecido, à época, ao da eleição de vereadores para as câmaras municipais.[2] Para concorrer ao cargo, bem como para exercê-lo, não era necessário ter conhecimentos na área do direito, nem ser jurisconsulto, pois seu papel em um “espaço de representação local” era mais importante que sua atuação segundo regiam os códigos legais tradicionais.[3]


Cabia ao juiz de paz manter a ordem e a paz na região sob sua tutela, prender meliantes, ouvir e registrar as queixas das partes em contenda, abrir inquéritos e queixas criminais. Dessa forma, impedia que processos mais simples se acumulassem no Judiciário ou se estendessem demasiado, causando, com isso, ônus financeiro e de tempo ao [já naquele tempo] atarefado Sistema Judiciário Brasileiro.[4]


A instituição de um juízo de paz remonta ao século XIV na Inglaterra; entrou e se disseminou nos Estados Unidos da América (segundo Tocqueville) com os puritanos e outros imigrantes ingleses que ali montaram suas colônias;[5] e foi o mote da liberdade democrática e popular nos governos republicanos que se seguiram durante a Revolução Francesa (1789, 1791, 1793). Por exemplo: na República Jacobina de 1793, Robespierre (1758-1794) elogiou a atuação dos juízes de paz nas mais distantes ou inóspitas vilas do país.[6]


Destaque também aos juízes de paz ingleses: eram tão competentes em suas funções (não remuneradas!) que poucas foram as vezes nas quais foram necessárias intervenções externa de órgãos do judiciário tradicionais nas questões que estavam sob a alçada destes juízes ordinários e locais.[7] No Brasil, o cargo de juiz de paz chegou para promover uma maior aproximação entre governo, justiça e população; para diminuir os encargos judiciais; e para “humanizar” as contendas sob as vistas da Justiça.[8]


A promulgação da lei que instituiu o cargo não foi unânime e, mesmo após sua aprovação, continuou a gerar controvérsias. Enquanto os debates se exaltavam cada vez mais, Carneiro de Campos precisou intervir em sessão do Senado a favor da aprovação do Ato Adicional que estabeleceria algumas mudanças da lei da Carta Constitucional referente aos juízes de paz:

Os Almotacés são os executores das posturas das câmaras, e muito melhor as executarão os juízes de paz; porque, sendo maior em número, do que são os juízes Almotacés, os juízes de paz melhor as executarão nos seus respectivos distritos; e uma vez que se decida aqui isto, não há falta na lei das municipalidades.[1]

Uma delas dissertava a respeito da perigosa aproximação pessoal dos juízes de paz com a população e com as oligarquias municipais e regionais sobre as quais tinha a atribuição de atuar. Para Vasconcellos, por exemplo, esta aproximação era um “perigo que vinha de baixo”, pois gerava favoritismos e injustiças.

O povo, sempre falto de luzes, crê de boa fé no que lhe pregam os mal-intencionados, que o desencaminham para os seus fins particulares. Nas províncias, como todos sabem, há diversos partidos. Não obram descobertamente, mas existem como o fogo debaixo das cinzas.[1]

IMAGEM 3: Escultura de Diogo Antônio Feijó, Monumento à Independência.

Museu do Ipiranga - São Paulo.

Contudo, para Feijó, “o perigo vinha de cima”, pois o Judiciário, de modo geral, e os jurisconsultos em particular, intervinham nas decisões dos juízes de paz, indo contra a determinação da lei na qual, às decisões dos juízes de paz, não cabia recurso superior. Os processos sob os auspícios do juiz de paz eram decididos com o testemunho de um juiz criminal e mais dois outros juízes de paz de outras regiões para garantir a integridade e idoneidade da determinação: “Eu entendo que, em casos extraordinários, não devemos olhar para formalidades”.[1] Por este motivo, não era cabível a intervenção de um jurisconsulto superior.[2]


Uma terceira controvérsia a respeito da atuação dos juízes de paz decorria de sua relativa falta de instrução e prática no tocante aos procedimentos afins ao âmbito judicial. Foi por este motivo que os dois personagens principais do livro de Campos, Slemian e Motta publicaram, no ano de 1829, seus manuais:


É um princípio falso o que supõe que a lei é só para o juiz. A lei é geral para todo mundo e sua determinação deve ser tão clara que qualquer [um] a entenda e que o magistrado não tenha dúvidas quando tratar de aplica-la, porque a lei não pode ser suprida por ninguém. À vista desta, o mesmo juiz diria: ‘A lei não está clara, portanto é preciso supri-la onde tem falta’. Ora, isto é o que eu não quero, porque dá lugar a arbítrios.[1]

Após ler este apelo de Carneiro de Campos, podemos imaginar que a lei que estabeleceu a atuação dos juízes de paz não teve a clareza necessária para se fazer entender enquanto tal...


Feijó produziu o Guia com 25 páginas, sem notas de rodapé, linguagem acessível e modelos de formulários bem resumidos para serem usados pelos juízes de paz nas situações mais corriqueiras inerentes a sua função.[1] Vasconcellos escreveu os Commentarios com 160 páginas, extensas notas de rodapé, linguagem acadêmica e jurídica, sendo que mais da metade de seu trabalho é composto também de formulários detalhados e maiores para o uso cotidiano dos juízes de paz.[2]


DOIS SISTEMAS, UM POLÍTICO E OUTRO JURÍDICO


O Sistema Misto de Governo propunha a união das propostas monarquistas com o Regime Representativo (nomeado como Parlamentar ou Constitucional), além de um viés forte pautado no liberalismo. Em muito se assemelha à proposta da Administração Judicial em um sistema também misto, pois promoveu a atuação tanto do Sistema Judiciário Tradicional (leis e jurisconsultos) quanto do Sistema Democrático e Popular estabelecido com os juízes de paz e sua proximidade com a população, mesmo no mais longínquo dos lugares.


Ou seja, a união de um sistema centralizado com outro descentralizado ocorreu na política monárquica constitucional, liberal e moderada e na relação entre a justiça tradicional e outra mais popular e conciliadora, instituída pelos juízes de paz.


António Manuel Hespanha (1945-2019) foi um dos precursores de um movimento historiográfico de releitura a respeito da monarquia portuguesa moderna e suas relações com as colônias, com destaque para a mais rica e promissora delas, a colônia brasileira. Para o pesquisador, o “império ultramarino português” foi, na verdade, uma rede de relações nas quais, desde seus primórdios, os poderes locais brasileiros - de nativos a portugueses, passando por mestiços, índios e escravos libertos - já se sobressaíam em meio às imposições que vinham de Lisboa. Seus apontamentos abarcaram, em especial, os séculos XVI ao XVIII, mas é embasamento teórico fundamental no que tange à realidade da política e da justiça brasileira nas primeiras décadas do século XIX. O autor nos mostrou que:

[...] do século XVII em diante, juristas - informados pelo pluralismo jurídico, tradicionalismo e casuísmo - elaboraram doutrinas jurídicas, que, globalmente, favoreceram os poderes periféricos ante os poderes do monarca.[1]

Por fim, tanto Vasconcellos quanto Feijó - além de Carneiro de Campos - conheciam as falhas e reveses do Sistema Misto. Falhas que advinham do ainda centralismo monárquico ou da falta de acordo entre parlamentares. O centralismo monárquico, segundo Vasconcellos, ditava a necessidade de a escolha dos juízes de paz ser feita pelo rei. Por outro lado, Feijó exortou a todos que o rei e o Judiciário deveriam se manter aquém da jurisdição dos juízes de paz se estes estivessem cumprindo suas funções segundo as determinações da lei.


Vivemos tempos de sedição política e social. No presente, o facciosismo político combatido pelos pensadores modernos, como Bruneto Latini (1230-1294) e Nicolau Maquiavel (1469-1527), ainda assombram nosso cotidiano.[1] Latini nos advertiu que “se cada qual seguir sua vontade apenas individual, o governo das vidas humanas será destruído e totalmente dissolvido”.[2] Somos presas da falta de compromisso político para com o futuro da nação e do planeta como unidade de governança partilhada. Carneiro de Campos, quase duzentos anos atrás, levantou sua voz contra essa tendência das sociedades modernas:

Cumpre que nos armemos com a égide impenetrável da razão contra as vozes de um povo alucinado e conduzido de boa fé pelos interessados das facções [empenhadas na reforma constitucional]. Em tempos de partidos, na efervescência das paixões, difícil é, para não dizer impossível, conseguir o conhecimento da verdadeira opinião pública. As facções já não dissimulam nem os seus projetos, nem as suas aspirações; elas se têm apresentado com armas na mão, depois de haverem corrompido a mocidade incauta e insciente, procurando arrastá-la à licença, para nos precipitar na anarquia e nos fazer perder a liberdade. Talvez não fosse este o tempo mais próprio para reforma - qualquer que ela seja não acalmará as paixões -, mas cumpre-nos tirar todo o pretexto com que se disfarçam vistas tão impuras e danosas. O nosso dever é procurar o que for mais profícuo à nação; ela pôs-nos neste lugar [o Senado] para dizermos francamente a nossa opinião sobre os seus interesses. O legislador não deve ser dominado por paixões e por partidos. Armemos a nossa consciência com uma tríplice couraça contra as opiniões corrompidas e desorganizadas.[1]

Inflamado pela emoção, o Marquês de Caravelas transpôs para si o peso de uma unidade política que, ainda nascente, já se inclinava para as disputas partidárias. Tal iniciativa quase se perdeu, pois, daqueles tempos, a história teve acesso somente aos discursos dos vencedores, os partidários de José Bonifácio e companhia. Carneiro de Campos - talvez, por mais uma injustiça da historiografia - perdeu seu cognome de “liberal” após o fechamento da Assembleia por D. Pedro I e, devido aos seus serviços tão úteis ao monarca, foi tachado pelos seus iguais de “monarquista” e “antirrepublicano.” Lynch, nos apontamentos finais de seu livro, defendeu o dedicado legislador:

O Marquês fez tudo o que pôde para defender a Constituição contra aqueles que, como Feijó, Vergueiro, Paula Sousa, e outros, pretendiam adaptá-la ao modelo norte-americano, presidencialista e federalista. Essa sua postura de resistência quase incondicional arrimou-lhe a boa reputação de liberal que o alçara antes à condição de regente provisório do Império.[1]

CONCLUSÃO


Em meio a um continente imerso na “anarquia” das ex-colônias espanholas devido ao desmantelamento das administrações dos Antigos Regimes Coloniais promovido por forças políticas insurgentes lideradas pelas populações nativa e criolla; em meio a uma Revolução que virava de ponta cabeça as mais tradicionais instituições francesas influenciando meio mundo; em meio às pressões de uma poderosa Inglaterra e sua sempre ameaçadora armada... o Brasil se saiu bem.


No alvorecer do liberalismo na terra brasilis, os brasileiros construíram sua própria alternativa para aproximar dos súditos de D. Pedro I a Justiça; a monarquia manteve os limites territoriais e o respeito a um soberano; e os parlamentares levaram para a tribuna as questões mais importantes para a recém-criada nação, dentre elas, a Justiça: ajustes nos códigos de leis - como a instituição dos juízes de paz - garantiram canais expressivos de participação do povo às estruturas da Justiça e às decisões do monarca.


REFERÊNCIAS


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CAMPOS, Adriana Pereira; SLEMIAN, Andréa; MOTTA, Kátia Sausen da. Juízes de Paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império. Curitiba–PR: Juruá, 2017.

CONSTANT, Benjamin. Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1997.

COSTA, Emília Viotti. “Introdução ao estudo da emancipação política.” In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em Perspectiva. São Paulo: Difel, 1968.

DANTAS, Bárbara. “Discursos na TV e a história do pensamento político.” In: DANTAS, Bárbara; FERNANDES, Rafael Salvan. Paradigmas da Filosofia Política: estudos aplicados. Vitória: Balsamum Editora, 2018.

FEIJÓ, Diogo Antônio. Guia do juis de pas do Brazil no desempenho de seus deveres por hum deputado, amigo da instituição. Rio de Janeiro: Typographia de Torres, 1829.

HESPANHA, António Manuel. “Antigo regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político colonial português.” In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 43-93.

HUME, David. Ensaios morais, políticos e literários. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

LATINI, Brunetto. Li livres dou tresor (Os livros do tesouro). Berkeley: Editora Francis J. Carmody, 1948.

LYNCH, Christian Edward Cyril. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-836). Belo Horizonte – MG: Editora da UFMG, 2014.

MARTONE, Luciano. Arbiter-arbitrator: forme di giustizia privata nell’età del diritto comune. Napoli: Jovene, 1984.

POLÍBIO. Histórias. Brasília: Editora da UNB, 1996.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

VASCONCELLOS, Bernardo Pereira de. Commentarios a Lei dos Juizes de Paz. Ouro Preto: Tipografia do Universal, 1829.



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Notas:

[1] Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenador do Laboratório de História Regional do Espírito Santo e Conexões Atlânticas (LACES/UFES/CNPq). E-mail: laces.ufes@gmail.com.

[1] LYNCH, 2014, p. 57.

[2] CAMPOS, Senado do Império, 28 de maio de 1832.

31] DANTAS, Bárbara. “Discursos na TV e a história do pensamento político.” In: DANTAS, Bárbara; FERNANDES, Rafael Salvan. Paradigmas da Filosofia Política: estudos aplicados. Vitória: Balsamum Editora, 2018. Internet: https://www.barbaradantas.com/post/discursos-na-tv-e-a-hist%C3%B3ria-do-pensamento-pol%C3%ADtico e https://www.balsamumeditora.com/product-page/paradigmas-da-filosofia-pol%C3%ADtica-estudos-aplicados

[4] LATINI, Brunetto. Li livres dou tresor (Os livros do tesouro). Berkeley: Editora Francis J. Carmody, 1948.

[5] HESPANHA, António Manuel. “Antigo regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político colonial português.” In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 46.

[6] SLEMIAN, 2017, p. 53.

[7] Ibid., p. 58.

[8] CAMPOS, Assembleia Constituinte, 9 de agosto de 1832.

[9] CAMPOS, Senado do Império, 30 de julho de 1832.

[10] CAMPOS, 2017, p. 33.

[11] Id., Assembleia Constituinte, 26 de maio de 1823.

[12] Id., Assembleia Constituinte, 26 de maio de 1823.

[13] CAMPOS, Senado do Império, 1827, p. 33.

[14] CAMARGO, ANGÉLICA Ricci. “Câmaras municipais.” In: BRASIL mapa – Memória da Administração Pública Brasileira. Dicionário da administração colonial. Rio de Janeiro: Mapa/Coged/Arquivo Nacional, 23 de maio de 2013.

[15] CAMPOS, 2017, p. 25

[16] SLEMIAN, 2017, p, 49.

[17] “Sabe-se que Mousinho da Silveira, personagem da revolução liberal de Portugal, apresentou manuscrito em que acusava o sistema do Antigo Regime de mau funcionamento [...].” CAMPOS, loc. cit., p. 38.

[18] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 86-87.

[19] MARTONE, Luciano. Arbiter-arbitrator: forme di giustizia privata nell’età del diritto comune. Napoli: Jovene, 1984, p. 4-5.

[20] “As comarcas consistiam em divisões judiciais em cada capitania, sob o encargo de ouvidores nomeados pelos governadores ou capitães-mores com a atribuição de receber apelação ou agravo.” CAMPOS, loc. cit., p. 27.

[21] “[...] adaptar a justiça ao novo conceito de soberania popular.” Ibid., p. 24.

[22] CAMPOS, Assembleia Constituinte, 13 de outubro de 1823.

[23] CONSTANT, Benjamin. Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1997, p. 323

[24] CAMPOS, 2017, p. 30-31.

[25] FEIJÓ, Diogo Antônio. Guia do juis de pas do Brazil no desempenho de seus deveres por hum deputado, amigo da instituição. Rio de Janeiro: Typographia de Torres, 1829; VASCONCELLOS, Bernardo Pereira de. Commentarios a Lei dos Juizes de Paz. Ouro Preto: Tipografia do Universal, 1829.

[26] SLEMIAN, “Dois projetos de justiça, uma mesma autoridade: os juízes de paz segundo Diogo Antônio Feijó e Bernardo Pereira de Vasconcellos (1829)”, in: CAMPOS; SLEMIAN; MOTTA, 2017, p. 48.

[27] CAMPOS, “O farol da boa prática judiciária: dois manuais para instrução dos juízes de paz”, in: ibid., p. 27.

[28] CAMPOS, loc. cit.

[29] BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. Brasília: Editora da UNB, 1997, p. 58.

[30] Id., 7 de maio de 1829.

[31] “O vazio deixado pela autoridade monárquica comprovou os temores conservadores hispânicos de que seus povos se achavam numa rota segura para a anarquia.” LYNCH, 2014, p. 33.

[32] Ibid., p. 34.

[33] HUME, David. Ensaios morais, políticos e literários. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 245; “Manutenção do tecido social e da sociabilidade, da família e dos valores cristãos.” LYNCH, 2014, p. 31.

[34] CAMPOS, Senado do Império, 18 de junho de 1832.

[35] p. 64.

[36] Ibid.

[37] “Cada uma das constituições corrompidas cederam cronologicamente lugar à seguinte forma de governo virtuosa [...] todas as formas virtuosas tenderiam fatalmente a se corromperem, dados os vícios e as paixões da natureza humana.” Ibid., p. 63.

[38] “Aristóteles afirmara que o governo ideal seria um misto de oligarquia com democracia [...] foi o general e historiador Políbio o primeiro defensor do governo misto.” LYNCH, loc. cit., p. 64-65.

[39] CAMPOS, Senado do Império, 24 de maio de 1826; LYNCH, 2014, p. 70/74.

[40] POLÍBIO. Histórias. Brasília: Editora da UNB, 1996, p. 348; LYNCH, loc. cit., p. 63/65.

[41] RODRIGUES, José Honório. História Viva. São Paulo: Global, 1985, p. 123.

[42] LYNCH, 2014, p. 68-69.

[43] COSTA, Emília Viotti. “Introdução ao estudo da emancipação política.” In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em Perspectiva. São Paulo: Difel, 1968, p. 121.

[44] LYNCH, 2014, p. 96.

[45] CAMPOS, Adriana Pereira; SLEMIAN, Andréa; MOTTA, Kátia Sausen da. Juízes de Paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império. Curitiba–PR: Juruá, 2017.

[46] BRASIL. CAMPOS, José Joaquim Carneiro de. Anais da Assembleia Constituinte. 26 de junho de 1823.

[47] LYNCH, Christian Edward Cyril. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-836). Belo Horizonte MG: Editora da UFMG, 2014.


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