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"Angelus" ou "O toque da Virgem": os sinos nas Cantigas de Santa Maria do rei Afonso X

Atualizado: 20 de abr. de 2023

Bárbara Dantas


*Se precisar citar, tê-lo como referência, utilize o formato a seguir:

DANTAS, Bárbara. “Angelus ou O toque da Virgem: a música nas Cantigas de Santa Maria (séc. XIII) do rei Afonso X.” Mirabilia Journal, 27, 2018/2, p. 19-38. Disponível em: https://www.barbaradantas.com/post/angelus-ou-o-toque-da-virgem-a-m%C3%BAsica-nas-cantigas-de-santa-maria-s%C3%A9c-xiii-do-rei-afonso-x e https://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/27.02.pdf


Baixe o PDF da publicação aqui.


Resumen: Armoniosa como una canción, la poesía galaico-portuguesa, sistematizada por la métrica del zéjel, fue la base de la poesía de las Cantigas de Santa María, compilación que contiene relatos de milagros y alabanzas a la Virgen realizada en la segunda mitad del siglo XIII a petición del rey castellano Alfonso X (1221-1284), idealizador, patrocinador y supervisor de la obra. En las Cantigas, la realidad es superada por la imaginación sin límites y la relación de la poesía con otras dos formas artísticas (Música e imagen) lo convierte en soporte literario en el cual los temas de las canciones a la Virgen se formaron. Música e imagen comparten con la poesía una sensibilidad capaz de expresar por diferentes formas determinado relato de milagro o alabanza. Para este artículo, les presento la Cantiga 276 de las Cantigas de Santa María. A partir de análisis iconográfico y arquitectónico, realicé la asociación entre las campanas de iglesias, la arquitectura de las torres de santuarios donde están abrigadas y la melodía del Angelus (El Toque de la Virgen).


Abstract: Harmonious as a song, The Galician-Portuguese poetry, systematized by the zéjel metric, was the basis of the poetry of Cantigas de Santa Maria, a compilation that contains reports of miracles and praises to the Virgin performed in the second half of the 13th century at the request of the castilian king Alfonso X (1221-1284), creator, sponsor and supervisor of the work. In Cantigas, reality is overcome by imagination without limits and the relation of poetry with two other artistic forms (Music and image) makes it literary support in which the themes of the songs to the Virgin were formed. Music and image share with the poetry a sensitivity capable of expressing in different ways certain reports of miracles or praise. For this article, I present to you the Cantiga 276 of the Cantigas de Santa Maria. From iconographic and architectural analyzes, I realized the association between church bells, the architecture of the sanctuary towers where they are housed and the melody of the Angelus (The Virgin's Touch).


Keywords: Cantigas de Santa María – Alfonso X – Middle Ages – Architecture – Music – Art – Poetry.


Palabras-clave: Cantigas de Santa María – Alfonso X – Edad Media – Arquitectura – Música – Arte – Poesía.



I. Introdução


A Cantiga 276 das Cantigas de Santa Maria é o palco no qual lhes apresentarei algumas reflexões a respeito da associação simbólica e iconográfica das representações de sinos e suas torres com a melodia do Ângelus, ou O Toque da Virgem. No códice afonsino, a expressão visual interage com a textual e nos enleva a uma esfera na qual a realidade não precisa estar presente. Por essa razão, o pesquisador precisa se entregar a uma metodologia que preze pela interdisciplinaridade. E ser interdisciplinar é saber relacionar e valorizar outras formas de análise de uma mesma fonte.


Em seu livro Arte e beleza na estética medieval, Umberto Eco nos adverte que, para acessar a excelsa figura divina, os medievais utilizaram símbolos.[1] Estudar a Música nas Cantigas requer, portanto, a análise dos símbolos implícitos na iconografia, nos textos e nas notações musicais. Labor que Afonso X entregou a trovadores, os versos do códice são acompanhados de notações musicais e demonstram como a Música sempre foi o emblema máximo de uma linguagem universal.



II. A Cantiga 276 e os sinos nas Cantigas de Santa Maria


O relato de milagre da Cantiga 276 ocorreu em uma capela construída nas imediações de Segóvia em homenagem à Virgem Maria. E nos revela que:


Em certa ocasião, um monteiro (cavaleiro caçador) entrava na igreja quando os sinos badalaram. Desafortunadamente, um dos sinos se desprendeu e caiu sobre o infeliz homem. O sino atingiu sua cabeça e todos que assistiram o acidente exclamaram: “Por Deus, que disso é morte sem falta!” As feridas tornaram a cabeça do monteiro uma massa mole como manteiga, nenhum osso permaneceu a salvo. Mesmo com a morte muito próxima, a multidão carregou o ferido para o interior do santuário e o deitaram ante o altar da Virgem. Passou a noite tal como um morto, jazendo. Mas, no alvorecer da manhã seguinte, a luz da vida resplandeceu nos olhos do monteiro. A Virgem lhe deu conforto, recuperou seus ferimentos e ossos abatidos. Fê-lo se erguer e seguir viagem com seus companheiros de montaria. Mas, antes, o agraciado monteiro louvou a Virgem Gloriosa pelo milagre que fez nele. Virgem que a todos protege sem falhar e possui formosa virtude.[2]


Os versos originais da canção nos mostram que a igreja da Virgem em Segóvia tinha uma bela capela:


Uma igreja sua ali,

muito formosa capela.[3]


Imagem 1: AFONSO X, Cantiga 276, Cantigas de Santa Maria, Códice de Florença, iluminura de página inteira, séc. XIII. Arquivo pessoal.


Imagem 1a: vinheta 02 da Cantiga 276.


Os sinos são tão presentes nas iluminuras historiadas das Cantigas de Santa Maria quanto os santuários nelas representados. Quase a totalidade das iluminuras contém a figuração de um sino, talvez porque pareceu aos iluminadores do códice de Afonso X que uma igreja sem sino não é um verdadeiro santuário cristão (Imagem 1a).[4] E a Imagem 2 mostra o mais famoso santuário gótico, a Notre Dame de Paris, e a torre sul que abriga o seu sino.


O badalar dos sinos das abadias monásticas foram os primeiros sons deste tipo a ecoarem nas paisagens europeias. Desde o séc. VII, os monges que soavam os sinos acrescentaram ao “tempo rural” (das estações, do dia e da noite), um “tempo monástico” (as horas canônicas).[5] O códice de Afonso X lembrou-nos de sua importância para “civilizar” um mundo ainda imerso na cultura pagã e no qual o badalar do sino chamava a comunidade cristã que vivia nas imediações para os rituais litúrgicos.


Imagem 2: Notre Dame de Paris, França, séc. XII. Peter Haas, 2013.


Na iluminura da Cantiga 52, por exemplo, o sino da torre da abadia campestre faz parte da composição das duas vinhetas que mostram um mesmo lugar em temporalidades diferentes (Imagem 3).


Imagem 3: Cantiga 52, detalhe da iluminura. Arquivo pessoal.


Dentre as torres de uma catedral, uma era reservada aos sinos, como vimos na torre sul da Catedral de Notre Dame de Paris da Imagem 2. Cantaria robusta sustenta a torre e as estruturas de madeira instaladas no seu interior que servem como plataformas para os tocadores de sinos fazerem ecoar pelo ar “a voz da catedral”.[6] Na Imagem 4, o interior da torre do sino da Catedral de Salisbury.


Imagem 4: Catedral de Salisbury, Inglaterra, 1220. Richard Avery, 2015.


Os medievais utilizaram torres para diferentes funções: torres de sinos em santuários, para a defesa em castelos, além daquelas construídas para armazenamento de bens de consumo ou de armaria nas sedes de governo ou de corporações de ofício. As torres se perdiam entre uma quimera arquitetônica de impulso vertical característica da cultura gótica; o desejo de ostentação da urbe que tivesse a torre mais elevada; e o fervor religioso materializado em um desejo de tornar a torre um caminho cujo destino é o céu. Na Imagem 5, escada em espiral feita com madeira no interior da torre do sino da Catedral de Salisbury. Rumo ao Paraíso!


Imagem 5: Catedral de Salisbury, Inglaterra, 1220. Gaius Cornelius, 2010.


Para o pesquisador de arte, os sinos das Cantigas mostram que, realmente, a iconografia se une às formas arquitetônicas e uma complementa a outra. O sino, forma iconográfica, torna-se enunciado para a representação do elemento arquitetônico, neste caso, a torre. Ou seja, a iconografia está estreitamente ligada à Arquitetura e não há um grau de hierarquia nesta relação, existe, na verdade, uma interação harmônica.[7]


Na iluminura da Cantiga 38 (Imagem 6), por exemplo, vemos uma das torres da catedral gótica com um sino. A profusão de telhados ao fundo da imagem sugere que o santuário se localiza em uma cidade.


Imagem 6: Cantiga 38, detalhe da iluminura. Arquivo pessoal.


Por sua vez, a iluminura da Cantiga 99 (Imagem 7) mostra, na margem inferior direita, a horda que se reúne na parte externa da muralha da cidade que querem invadir. As lanças e escudos dão o tom ameaçador para a cena. Os moradores estão escondidos no santuário da Virgem, olham para ela e pedem sua clemência. O sino está na parte superior, seu soar ininterrupto indicava situação de perigo como o cerco de uma cidade por tropas inimigas.


Imagem 7: Cantiga 99, detalhe da iluminura. Arquivo pessoal.


A profusão de iconografia que representa sinos nas Cantigas mostra que os iluminadores do códice afonsino tinham razão ao considerá-lo um dos mais característicos elementos dos santuários. Afinal, na composição arquitetônica de um santuário na Idade Média, a torre do sino absorveu imperiosa atenção do arquiteto e dos mestres de oficinas que o serviam.


Um sino pode pesar toneladas, por isso, grande disposição laboral dos obreiros, além de minuciosa atividade intelectual do arquiteto, eram direcionadas à construção de uma torre que suportasse tanto o peso do sino quanto as movimentações estruturais quase imperceptíveis que o badalar deles causam. Na Imagem 8, o frade utiliza uma corda para soar o sino.


Imagem 8: Cantiga 11, detalhe da iluminura. Arquivo pessoal.


Sinos e carrilhões (grupo de dois ou mais sinos) ocupam o alto das fachadas dos santuários medievais e a iluminura da Cantiga 17 (Imagem 9) mostra um carrilhão de dois sinos.


Imagem 9: Cantiga 17, detalhe da iluminura. Arquivo pessoal.



III. Música


O sino é um instrumento de metal, geralmente em bronze, oco e na forma de cúpula do qual se tiram sons por meio de badaladas feitas com um objeto de metal no seu interior puxado por uma corda ou com um martelo na parte externa.[8] Considerado um instrumento musical, dos sinos se tiram sons e música. Isidoro de Sevilha, nesse sentido, escreveu um “histórico e poético” relato a respeito do significado da música:


Música é a perícia na modulação consistente no som e no canto. Chama-se música por derivar de Musa. O nome das Musas, por sua vez, tem sua origem em másai, que quer dizer procurar, já que, por elas, conforme acreditaram os antigos, se procurava a vitalidade dos poemas e a modulação da voz. Seus cantos, que entram pelos sentidos, remontam à noite dos tempos e se transmitem pela memória. Por isso os poetas imaginaram as Musas como filhas de Júpiter e de Memória, pois se seus sons não fossem gravados na memória, se perderiam, já que não podem ser escritos.[9]


Os resquícios da cultura greco-romana no texto de Isidoro de Sevilha, ao se referir às Nove Musas, mostram as tentativas dos pensadores dos primeiros séculos da Idade Média em absorver o conhecimento dos antigos e construir uma nova realidade com diferentes significados para os tradicionais símbolos. No Ocidente, desde os séculos finais da Antiguidade, foi a religião que forneceu ao mundo cristão grande parte dos sistemas explicativos a respeito do mundo real e o papel dos símbolos para este conhecimento.[10] Para cada componente do mundo terreno, outro simbólico, invisível e abstrato. Esta realidade dialógica do celeste com o terrestre atuou em todos os níveis do universo cristão medieval.


O sino produzia os sons que eram, simbolicamente, o chamado de Deus aos homens para volverem suas faces na direção do santuário divino. Para a teoria musical grega (conhecida pelos medievais), os sons bem arranjados produzem “harmonia”.[11] Desta composição harmônica se cria a música, uma das linguagens mais abrangentes e antigas já produzidas pelo homem. De modo geral, o pensamento greco-romano arguiu a favor de que a humanidade é revelada por meio do som (música), do volume (escultura) ou por uma figura (pintura).[12]


Se “o homem foi originalmente criado para a contemplação”,[13] como refletiu o papa Gregório Magno (c. 540-604) no séc. VI, as artes citadas acima (Música, escultura e pintura) são criações que deleitam o homem e, acima de tudo, encaminham-no à admiração da beleza do mundo e do valor simbólico que esta beatitude, a contemplação mística do universo, tem para todos. Na Imagem 10, Gregório Magno é o dictator e o diácono Pedro, o escriptor. O Espírito Santo, personificado na pomba, é a inspiração do texto papal.


A música, portanto, revela o que é inaudível ou visualmente imperceptível. Assim, Gregório instituiu a criação de um “universo sonoro” para unir os fiéis e solidificar a fé cristã e, nesse sentido, seu maior legado foi a criação do “canto gregoriano”. Os monges/missionários que percorreram as terras mais distantes para evangelizar os povos pagãos carregavam, entre seus parcos pertences, pequenos Antifonários com cantos gregorianos para apresentar aos simples e gentios, pela música, o Deus cristão.[14]


Imagem 10: Antifonário do Mosteiro de Saint-Gall,[15] séc. XI – Suíça. Saint-Gall Monastery.


Os monges cistercienses implementaram uma ordo rerum que pretendia fazer do canto gregoriano uma materialização da “ordem do universo” presente nos astros do céu. As atividades dos monges eram, em sua maioria, coletivas e, dentre elas, o ato de cantar. As “Sagradas Palavras” (em especial, os Salmos de Davi) eram pronunciadas como uma melodia musical cuja entonação era a mesma para todos. Os sete tons musicais deveriam ser similares às harmonias cósmicas, considerada a maior manifestação da razão de Deus. As palavras declamadas em uníssono pelo grupo de monges eram como palavras angelicais. Tal concordância de vozes, tons e temas ligava a terra ao céu, que era a principal função do mosteiro, ser o Paraíso terrestre.[16]


O conceito de “beatitude” (contemplação do universo em sua mais íntima forma), por exemplo, transpôs os limites temporais e saiu da Filosofia Romana para influenciar o pensamento medieval. Ao longo da Idade Média, as obras de Virgílio, Ovídio, Horácio e de Cícero foram, continuamente, estudadas.[17]


Cícero, filósofo romano, é considerado o predecessor dos principais cânones do Cristianismo e um dos pensadores que mais influenciaram a criação de uma relação místico/religiosa do homem com o universo e com Deus. O senador e filósofo, em sua obra O sonho de Cipião, indica para onde os olhares humanos se voltam, o local onde as almas imortais habitam, o céu:


Eis o caminho para o céu, para a convivência com aqueles que já viveram e deixaram o corpo para habitarem o lugar que estás a contemplar [...] acima da lua tudo é eterno. A Terra, localizada na região central do mundo, é nossa esfera. Ela é imóvel, mais baixa e recebe o peso de todos os astros que gravitam ao seu redor.[18]


E a Bíblia nos lembra:


Deus disse: Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite; que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os anos; que sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra’, e assim se fez. Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro para governar o dia e o pequeno luzeiro para governar a noite, e as estrelas. Deus colocou no firmamento do céu para iluminar a terra, para governarem o dia e a noite, para separarem a luz e as trevas, e Deus viu que isso era bom (Gn 1, 14-18);

Ele fez os grandes luminares: porque o seu amor é para sempre! O sol para governar o dia, porque o seu amor é para sempre! A lua e as estrelas para governarem a noite, porque o seu amor é para sempre! (Sl 136 7-9).[19]


A Ordem do Universo foi um dos temas mais discutidos pelos filósofos da Idade Média. Para a cultura gótica, a fonte primordial foram os textos remanescentes do Pseudo-Dionísio Areopagita do séc. V, no qual relembra a passagem da Bíblia com “os grandes luminares”, o sol e a lua:


É causa também dos movimentos da enorme evolução celeste, que sucede sem rumor, e das ordens, das belezas, das luzes e das estabilidades das estrelas e dos vários cursos de algumas estrelas errantes e do retorno periódico aos seus pontos de partida das duas luminárias que a Sagrada Escritura chama grandes, por cujo curso são definidos os dias e as noites, e medidos os meses e os anos, que precisam os movimentos cíclicos do tempo e das coisas que estão submetidas ao tempo, os enumeram, os ordenam e os contêm.[20]


Cícero, ainda em seu relato imerso em uma “Teologia Natural”, faz da música uma explicação metafórica da conjunção celestial. Para ele existe uma “sinfonia dos astros celestes” que “resulta do impulso, do movimento e das vibrações desses globos com seus giros que, alternando sons agudos com graves, produzem harmonias variadas”. Cícero vai além e elogia aqueles que possuem o conhecimento de reproduzir aquilo que chamou uma “ciência divina”, a Música: “indivíduos habilidosos, com instrumentos de corda e com seus cânticos, reproduzem aqueles sons”.


Naqueles tempos onde os santuários da Virgem cobriam as paisagens, foram criados hinos, litanias e cantos em Sua honra. No tempo das Cantigas de Santa Maria, a oração da Virgem Maria, a Ave Maria, já era cântico.[21] As duas últimas vinhetas da iluminura da Cantiga 307 (Imagem 11) mostram, respectivamente, um “homem bom” compondo uma canção para a Virgem e, na vinheta seguinte, o grupo de fiéis canta a música do compositor no interior do recinto sagrado e à frente da imagem da Santa com o Menino no altar.


Imagem 11: Cantiga 307, detalhe da iluminura. Arquivo pessoal.


E foi assim, com Música, que os sinos das igrejas cumpriam seu papel religioso e social. O Angelus ou O Toque da Virgem Maria indicava as Horas das Ave-Marias (06, 12 e 18 horas). O Angelus (contração de Angelus Domini nuntiavit Mariæ) relembra e celebra diariamente o mistério da Anunciação (Lc 1:26-38):


E, no sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem, cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. E, entrando o anjo aonde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres. E, vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras, e considerava que saudação seria esta. Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus. E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim. E disse Maria ao anjo: Como se fará isto, visto que não conheço homem algum? E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus. E eis que também Isabel, tua prima, concebeu um filho em sua velhice; e é este o sexto mês para aquela que era chamada estéril; Porque para Deus nada é impossível. Disse então Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra. E o anjo ausentou-se dela.[22]


Nesse sentido, o primeiro dos “sete gozos da Virgem” do Louvor 01 das Cantigas de Santa Maria registrou poética e artisticamente o evento (Imagem 12): “Bem aventurada Virgem, de Deus amada: daquele que o mundo há de salvar ficas agora grávida”.[23]


Imagem 12: Louvor 01, detalhe da iluminura. Arquivo pessoal.


O escultor francês Auguste Rodin considerou as três badaladas do Angelus um toque sublime. Ele fez um elogio ao passado medieval, bem como um clamor para que as autoridades e a sociedade preservassem toda aquela riqueza travestida em “montanhas de pedra”. No extrato abaixo, imaginou como as batidas dos sinos, os toques do Angelus, ressoavam por toda a região circundante dos santuários góticos ainda no período medieval:


A catedral se elevava para dominar a cidade reunida em torno dela, como se debaixo de asas protetoras, para servir de reunião, de refúgio, aos peregrinos perdidos nas estradas longínquas, para ser o farol deles, para atingir os olhos vivos tão longe no dia quanto os ângelus e os toques a rebate podiam atingir na noite os ouvidos vivos.[24]



IV. A Alvorada


Mas foi um sino que quase matou o monteiro da Cantiga 276. Sua cabeça, após a queda do sino, estava parcialmente esmagada. No entanto, após uma noite aos pés do altar da Virgem, no alvorecer do dia, viu-se totalmente curado de seu ferimento. Assim, suspeita-se que foi a luz do alvorecer, filtrada pelas cores reluzentes de figuras santas representadas nos vitrais que encheu de luz o santuário e trouxe o monteiro da morte para a vida. Porque a Alvorada, para os medievais, era uma manifestação simbólica e sensível da presença da Virgem, de um novo renascer do mundo sob sua figura excelsa de luz e de esperança. A Imagem 13 mostra que, na arquitetura das catedrais, o altar deveria receber a luz da Alvorada, o calor e a luz reconfortante das graças da Virgem.


Imagem 13: Luz do sol sobre o coro da abside. Notre Dame de Laon, França, 1160. Paul Hermans, 2005.


Assim, legou-nos Ramon Llull (1232-1315) o Livro de Santa Maria. No Capítulo XXX, o filósofo discorre a respeito da analogia entre a Alvorada e a Virgem:


A Alvorada: – Louvor - Disse o ermitão -, o que é a alvorada? Respondeu Louvor: – É o começo do resplendor e o fim das trevas. E como Nossa Senhora é alva, os justos e os pecadores querem louvá-la dessa maneira, por sua semelhança com a alvorada. Nossa Senhora é alva de resplendor - disse Louvor -, porque nela se fez carne o Filho de Deus, que é luz das luzes e resplendor dos resplendores. Assim, como Nossa Senhora foi desse modo iluminada de resplendor naquela Encarnação, se tornou princípio de resplendor para os justos e para os pecadores.[25]


A abside (local de abrigo do coro e do altar) é o ponto mais sublime da relação entre a Arquitetura medieval e as Cantigas de Santa Maria. O códice de Afonso X uniu os prazeres estéticos com a religião. Nele, a Música ministra uma ordo artística e poética na qual as outras artes, ao mesmo tempo, submetem-se e interagem.


As expressões musicais no códice afonsino estão associadas à junção da Música com a Arquitetura por meio das “teorias geométricas das formas perfeitas e da ordem do universo”; da Arquitetura em prol da acústica perfeita para a exploração do canto gregoriano nas catedrais; ou nos singelos, porém sibilantes, toques dos sinos medievais. Do Angelus, uma ode às graças recebidas por Maria.[26]


As Cantigas são a materialidade da “relação analógica” dos medievais com os seres celestiais que habitam na simbólica Jerusalém Celeste. Os ritmos e temas da cultura cortesã e trovadoresca encaminharam seu fervor servil para a mais pura, sábia e poderosa das senhoras, a Virgem Maria. Afinal, a “dimensão mental” do culto à Maria no séc. XIII se desenvolveu, também, no interior da comunidade lírico trovadoresca.[27]


Imagem 14: Louvor 10, detalhe da iluminura. Arquivo pessoal.


Afonso X, soberano do mais poderoso território da Espanha medieval, os reinos de Castela e Leão, humildemente se intitulou vassalo de Santa Maria, a “sennor das sennores”. No Louvor 10, o rei faz sua famosa dedicatória (Imagem 14): “esta senhora que tenho como Senhor, da qual quero ser trovador, se, porventura, puder ter seu amor, darei ao Diabo os outros amores”.[28] Na vinheta, D. Afonso aponta para a Virgem com uma mão e afasta o diabo com a outra, pois é para Ela que o “trovador rei” cantará dali por diante.



V. Conclusão


Para não me perder no oceano de religiosidade, Música, cores e poesia das Cantigas, atentei-me ao elo existente entre os textos das cantigas e as iluminuras historiadas a eles correspondentes. Afinal, o Catolicismo ocidental resume-se à ligação texto/imagem e o códice afonsino seguiu o fluxo de uma prática que já era milenar no séc. XIII. Os edifícios religiosos das Cantigas representam as primícias da ordem beneditina no que diz respeito à funcionalidade religiosa de seus elementos arquitetônicos, sinos e torres são a materialização em metal e pedra destas primícias.


Rodin, o famoso escultor do séc. XIX que se encantou com os santuários medievais do interior da França, lamentou em seu livro, Grandes Catedrais, o fato de muitas igrejas já não tocarem o Angelus. Quase duzentos anos depois, mesmo que de forma sutil e humilde, este trabalho homenageia O Toque da Virgem, aquele que se ouvia ao longe, o soar que fazia a respiração parar por alguns segundos, o som que direcionava os olhares para o céu.



VI. Fontes


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VII. Bibliografia


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Notas:


[1] ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Globo, 1989, p. 79.

[2] Resumo em prosa diretamente do original versificado em galego-português (trad. Bárbara Dantas).

[3] “Hũa sa eigrej' aly, mui fremosa capela”. AFONSO X, o Sábio. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann. Madri: Castalia, 1988, p. 46, 11-12.

[4] “A Igreja tentava manter as suas ovelhas unidas, convidando-as a atravessar o limiar do tempo, marcado pelo forte toque dos sinos”. FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 81.

[5] LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2006, 2 v, p. 536.

[6] MACAULAY, David. Construção de uma catedral. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 76.

[7] CÓMEZ RAMOS, Rafael. “La arquitectura en las miniaturas de la corte de Alfonso X el Sabio.” In: Alcanate: revista de estudos alfonsíes. Sevilha. Ano VI. 2008-2009, p. 209. Disponível em: http://editorial.us.es/es/alcanate-revista-de-estudios-alfonsies/num_6

[8] MACAULAY, 1988, p. 70.

[9] ISIDORO DE SEVILHA. Livro III, cap. 15, 1. Etimologias. Livro III, cap. 15, 1. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 1985.

[10] ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 80.

[11] A harmonia “compunha-se tradicionalmente de sete tópicos: notas, intervalos, gêneros, sistemas de escalas, tons, modulação e composição melódica. Estes tópicos são enumerados por esta ordem por Cleonides (autor de data incerta, talvez do séc. II d.C”. GROUT, Donald J; PALISCA, Claude V. História da música ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007, p. 22.

[12] PULS, Maurício. Arquitetura e filosofia. São Paulo: Annablume, 2006, p. 17.

[13] GREGÓRIO MAGNO. Moralia in Job, 8, 34. Ver em: www.ricardocosta.com

[14] GROUT; PALISCA, 2007, p. 44.

[15] Antifonário: tipo de livro litúrgico utilizado pelos corais das igrejas com versos que precedem a leitura dos Salmos.

[16] DUBY, Georges. São Bernardo e a arte cisterciense. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 28.

[17] GROUT; PALISCA, loc. cit., p. 16.

[18] CÍCERO. A velhice saudável (De Senectude) e o Sonho de Cipião. São Paulo: Escala, 2006, p. 96.

[19] BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2013, p. 1006.

[20] PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA. Dos nomes divinos. São Paulo: Attar Editorial, 2004, p. 93.

[21] ARCANGELI, María Laura Marenzi. Aspectti del tema dela Vergine nella letteratura francese del Medievo. Veneza: Libreria Universitaria Editrice, 1968, p. 224.

[22] BÍBLIA, 2013, p. 1786-1787.

[23] “Benaventurada Virgen, de Deus amada: do que o mund’ á de salvar ficas ora prennada”. AFONSO X, 1986, p. 56-57 (trad.: Bárbara Dantas).

[24] RODIN, Auguste. Grandes Catedrais. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 2-3.

[25] “D’ALBA: – Lausor - dix l’ermità -, què és alba? Respos Lausor, e dix que alba és començament de resplendor e fi de tenebres. E car nostra Dona alba de justs e de pecadors, volem’ loar nostra Dona sots semblança d’alba en esta manera. – És nostra Dona alba de resplendor - dix Lausor -, car en nostra Dona pres carn lo fill de Déu qui és lum dels lums e resplendor de les resplendors. Per què nostra Dona fo així iluminada de resplendor en aquella encarnació, que ella és començament de resplendor a justs e a pecadors”. LLULL, Ramon. Obres essencials (OE). Vol. I. Barcelona: Editorial Selecta, 1957 (trad.: Bárbara Dantas e Ricardo da Costa).

[26] BREA, Mercedes. “Tradiciones que confluem em las Cantigas de Santa Maria.” In: Alcanate, Revista de Estudos Alfonsíes. Sevilha. Ano IV. 2004-2005, p. 271. Ver em: file:///C:/Users/Core%20i3/Downloads/Dialnet-TradicionesQueConfluyenEnLasCantigasDeSantaMaria-1389301.pdf

[27] Ibid.

[28] “Esta dona que tenno por Sennor / e de que quero seer trobador, / se eu per ren poss' aver seu amor, / dou ao demo os outros amores”. AFONSO X, 1986, p. 84 (trad.: Bárbara Dantas).

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