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A felicidade no amor aos livros: da Grécia a Santo Isidoro de Sevilha e São Bonifácio

Ricardo da Costa & Bárbara Dantas


* Se precisar citar, tê-lo como referência, seguir:

COSTA, Ricardo; DANTAS, Bárbara. A felicidade no amor aos livros: da Grécia a Santo Isidoro de Sevilha e São Bonifácio. CORTIJO OCAÑA, Antonio (dir. & ed.). eHumanista, Journal of Iberian Studies, v. 59, University of California, Santa Bárbara, Estados Unidos da América, 2024, pp. 211-235.


Resumo: Estudo sobre a Educação fundada no Espírito baseada na tradição livresca ocidental, no amor à palavra impressa. Sua trajetória a partir da Grécia e de Roma e sua disseminação do Cristianismo, com o protagonismo da Igreja Católica. Dos primeiros religiosos cristãos à tradição fundada por Bento de Núrsia e Cassiodoro, até o Enciclopedismo de Isidoro de Sevilha e São Bonifácio.


Palavras-chave: Bibliotecas – Bento de Núrsia – Cassiodoro – Isidoro de Sevilha – São Bonifácio.


Abstract: Study on Education founded on the Spirit based on the Western bookish tradition, on the love of the printed word. Its trajectory from Greece and Rome and its dissemination of Christianity, with the leading role of the Catholic Church. From the first Christian religious to the tradition founded by Benedict of Nursia and Cassiodorus, to the Encyclopedism of Isidore of Seville and Saint Boniface OSB.


Keywords: Libraries – Benedict of Nursia – Cassiodorus – Isidore of Seville – Saint Boniface OSB.


Resumen: Estudio sobre la Educación fundada en el Espíritu fundamentada en la tradición del libro occidental, en el amor a la palabra impresa. Su trayectoria desde Grecia y Roma y su difusión del cristianismo, con el papel protagonista de la Iglesia católica. Desde los primeros religiosos cristianos hasta la tradición fundada por Benito de Nursia y Casiodoro, pasando por el Enciclopedismo de Isidoro de Sevilla y San Bonifacio.


Palabras clave: Bibliotecas – Benito de Nursia – Casiodoro – Isidoro de Sevilla – San Bonifacio.


A leitura é um diálogo – e este é o paradoxo do livro – com alguém que não está diante de nós [...] que está presente só como escrita. Existe uma interrogação dos livros (chama-se hermenêutica), e se existe hermenêutica, existe culto o livro. As três religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – desenvolvem-se sob a forma de interrogação contínua de um livro sagrado [...] um homem que lê vale por dois: na verdade, vale por mil.

Umberto Eco

 

I. GRÉCIA

 

Imagem 1 

Benoît de Sainte-Maure (†1173). Cornélio Nepos descobre a História de Tróia de Dares, o frígio, em um armário. Iluminura de uma cópia (c.1340-1350) do poema Roman de Troie (c.1155-1160). Biblioteca Nacional da França – Paris, Manuscrits Français 782, folio 2v

O “armário” é o que hoje chamamos de Biblioteca.

 

“Vá rapaz, toma o texto e lê” (Platão 2010, p. 187). A ordem ao escravo dada pelo matemático grego Euclides (III a.C.) no Teeteto de Platão (428-348 a.C.) se ajusta a todos os âmbitos do conhecimento: pegue um livro, pegue o livro e leia-o! Assim começa o diálogo platônico sobre o saber e a sabedoria (Borges 2009). É também dessa forma que principia o mundo interior, similar à poética do literato brasileiro Machado de Assis (1839-1908):

 

E, contudo, se fecho os olhos, e mergulho / Dentro de mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo / Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho, / Rola a vida imortal e o eterno cataclismo, / E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme, /Um segredo que atrai, que desafia, – e dorme (Assis 1985, p. 153).

 

No Ocidente, a escrita alfabética surgiu na Grécia, por volta do século VIII a.C. Seus primeiros leitores praticavam a leitura em voz alta. A partir do século V a.C., alguns gregos passaram a ler em silêncio (Svenbro 1998, pp. 41-42, 55). Época na qual começou a vultosa comercialização de livros e, consequentemente, da leitura privada (Manguel 1997, p. 78).

 

Imagem 2

Anônino. Vaso de figuras vermelhas, 33,02 cm, cerâmica, c.450 a.C., Ática – Grécia. British Museum  Londres, no 1885,1213.18.

A Hidria – ὑδρία, em grego – era um vaso usado para transportar água, azeite ou votos de juízes. É possível que a figura sentada lendo um papiro seja a poetisa Safo (c.630-570 a.C.). Ao seu redor, três serviçais de pé, portam, cada uma, um objeto diferente. Da esquerda para a direita: a primeira carrega uma bolsa, que deve conter alguns objetos pessoais da poetisa; a segunda levanta na direção de Safo uma caixa ornamentada, na qual talvez estejam outros rolos de papiro; e a terceira segura o que sugere ser um ramo de oliveira. Todas estão trajadas com um chíton χιτών, em grego –, túnica de lã ou linho e aparentam interesse no texto que a poetisa lê.

 

Lia-se em rolos de papiro na Grécia, pelo menos, até o século VI a.C. (imagem 2). Também se lia em tabuinhas de argila (Fournet 2013, pp. 5057-5058). Além das iniciativas privadas para a criação de bibliotecas, sabe-se que Pisístrato (c.600-527 a.C.) fundou em Atenas a primeira biblioteca pública (Macleod Roy 2000, p. 1). A partir de então, criar bibliotecas foi uma prática disseminada de tal forma que, após a morte de Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), e o início do período helenístico (323-31 a.C.) todos os núcleos urbanos por ele fundado contavam com uma biblioteca real, o que era um prestígio para tais cidades, pois se tornavam atrativas para estudiosos e auxiliares da administração pública (Fox 1986, p. 340).

 

I.1. A Grande Biblioteca de Alexandria

 

Alexandre, o Grande, foi um rei macedônio que dominou meio mundo e fundou Alexandria em 331 a.C., na extremidade ocidental do Delta do Nilo – Egito. Supõe-se que, por volta de 295 a.C., o orador grego Demétrio de Falero (c.350-280 a.C.) sugeriu a Ptolomeu I (367-282 a.C.) – ex-general de Alexandre, que se tornou governante do Egito e fundou a Dinastia Ptolomaica – a criação da Biblioteca de Alexandria (Manguel 1997, p. 216). A sugestão de Demétrio era construir um anexo ao Moseion – Μουσεῖον τῆς Ἀλεξανδρείας, em grego –, instituição dedicada às Musas, as nove filhas de Zeus com Mnemosine, a deusa da memória: Calíope, musa da eloquência; Clio, musa da história; Euterpe, musa da música; Melpômene, musa do teatro; Terpsícore, musa da dança, Érato, musa da poesia; Urânia, musa da astronomia; Talia, musa da comédia; e Polímnia, musa da retórica; o líder mítico das Musas era o deus Apolo (Dantas 2012). A função do moseion era ser um local de ensino e estudo (Escolar Sobrino 2001), como assim verificou o geógrafo grego Estrabão (c.63-24 a.C.) quando visitou Alexandria com Élio Galo, governador do Egito (26-24 a.C.), por volta de 30-25 a.C.:

 

O Museu faz parte dos palácios. Tem um passeio público, um lugar mobiliado com assentos e um grande salão, no qual os homens de instrução, que pertencem ao Museu, fazem sua refeição. Esta comunidade também tem bens em comum, e um clérigo, anteriormente nomeado pelos reis, mas atualmente por César, preside o Museu (Strabo 2024).

 

Imagem 3

O. von Corben (1812-1886). A Grande Biblioteca de Alexandria. Gravura que representa a Biblioteca de Alexandria baseada em evidências arqueológicas. Fonte: TOLZMANN; HESSEL; PEISS 2001.

 

O filósofo grego Galeno (129-216) registrou na sua obra, Comentários sobre as epidemias de Hipócrates, que as obras do Moseion foram concluídas sob o reinado de Ptolomeu II (309-246 a.C.). O faraó também adquiriu os rolos de papiro que estavam no Liceu de Aristóteles – provavelmente, das mãos de Neleu de Escépis, discípulo do Estagirita, que viveu em torno do ano 300 a.C., ou de um de seus descendentes. O historiador judaico-romano Flávio Josefo (c.37-100) conta que esse ato ajudou a formar o núcleo da maior biblioteca do mundo antigo, com cerca de quinhentos mil volumes – volumina, em latim (Canfora 2024).


Sob Ptolomeu III (246-221 a.C.) a coleção da biblioteca cresceu rapidamente, pois ele decretou que todos os navios que chegassem ao porto de Alexandria deveriam entregar na biblioteca as obras sob suas posses, para que delas fossem feitas cópias (Galen 2022). Assim, Alexandria se transformou na capital intelectual do mundo mediterrâneo e matriz do trabalho intelectual de todas as civilizações ocidentais (Barbier 2023/2, pp. 41-52).

 

II. ROMA

 

No mundo romano, pelo menos até Catão, o Censor (234-149 a.C.), a escrita era atividade dos sacerdotes e governantes responsáveis pelos conhecimentos citadinos acerca tanto do sagrado quanto do jurídico. Com a chegada a Roma de bibliotecas gregas, obras helênicas passaram a servir como modelos para os livros latinos, a ponto de seu bisneto, Catão, o Jovem (95-46 a.C.), registrar que a leitura privada já se tornara uma prática comum e, com ela, as bibliotecas privadas, consideradas espaços de ócio (Cavallo 1998, pp. 72-73). A leitura nasceu em Roma como uma atividade de prazer – voluptas, em latim –, como diz Cícero (106-43 a.C.):

 

[...] tais estudos atraem pelo seu valor intrínseco, porque a mente se interessa por eles apesar de nenhuma utilidade prática oferecerem [...] Sei bem que a história tem uma certa utilidade, para além do prazer. Que motivo, porém, nos leva a ler com prazer obras de ficção de que nenhuma utilidade é possível extrair?

[...]

Os antigos filósofos descrevem como seria a vida dos sábios nas Ilhas dos Bem Afortunados: libertos de todas as preocupações, sem necessitarem dos cuidados e apetrechos da vida quotidiana, a única coisa em que acham dever empregar o tempo é no estudo e na investigação dos fenómenos da natureza. Por nosso lado, entendemos que nestes estudos reside, não só aquilo que nos proporciona a felicidade nesta "vida, mas também o alívio para os nossos sofrimentos [...] (apud Eco 2013, p. 148).

 

A primeira biblioteca pública romana foi fundada pelo cônsul Caio Asínio Polião (76-4 a.C.), ao lado do Templo da Liberdade (Villalba I Varneda 1996, p. 365, nota 1072). A segunda biblioteca surgiu da iniciativa do imperador Otávio Augusto (63 a.C.-14), localizada anexa ao Pórtico do Templo de Apolo Palatino – infelizmente, ela foi destruída por um incêndio. Sua irmã, Otávia, a Jovem (66-11 a.C.), fundou duas bibliotecas anexas ao Pórtico de Otávia, ambas em honra à memória de seu filho, Marco Cláudio Marcelo (41-23 a.C.). Cada uma delas era dividida em duas partes: uma para textos em grego, outra para obras latinas. O historiador grego Plutarco (46-120 a.C.) dissertou a respeito:

 

Sua linhagem manteve seu esplendor até Marcelo, sobrinho de César Augusto, filho da irmã de César, Otávia, com Caio Marcelo, que morreu durante seu cargo de edil[1] em Roma, tendo recentemente se casado com uma filha de César. Em sua homenagem e em sua memória, sua mãe, Otávia, dedicou a biblioteca, e a César o teatro, que leva seu nome (Plutarch 2017). ​

 

Desde então, Roma tomou para si a missão de estender as letras ao mundo, à medida que o conquistava. A exemplo do imperador Trajano (53-117), que tornou a Biblioteca Úlpia uma das mais importantes da Antiguidade (imagem 4).

 

Imagem 4

Reconstituição (maquete) da Biblioteca Úlpia (112-114), localizada no Fórum de Trajano, em Roma.

 

Definitivamente, o Império Romano adquirira o gosto pela leitura. Ademais, em todos os rincões imperiais existiam, além das públicas, bibliotecas privadas. Um magnífico tipo de biblioteca privada romana foi a da Vila dos Papiros, em Herculano – Villa dei Pisoni, em italiano. Ela foi a única sobrevivente à trágica erupção do Vesúvio, que enterrou as cidades de Pompéia e Herculano no ano 79 (Sider 2005). A Vila dos Papiros foi preservada sob as cinzas com mais de mil e oitocentos rolos de papiro! Luxuosíssima, ela também abrigava a maior coleção de esculturas de bronze descoberta em um único contexto – pelo menos oitenta, de magnífica qualidade (Bieber 1961, pp. 106-107). É provável que seu proprietário fosse Lúcio Calpúrnio Pisão Cesonino (c.105-43 a.C.), sogro de Júlio César (101-44 a.C.). Definitivamente filosófica, sua biblioteca era para seu uso particular – assim como nas bibliotecas públicas, havia nela uma seção grega (de tratados epicuristas) e outra latina (de escritos contemporâneos) (Cavallo 1998, p. 75).

 

II.1. Do papiro ao códice

 

Para que tenhamos uma ideia de quão revolucionária foi a posterior difusão do códice – codex, em latim – na Idade Média, é preciso dissertar, primeiro, acerca do suporte textual anterior, o papiro (Lewis 1975). Frágil, não era flexível a ponto de poder ser dobrado. Seu armazenamento ocupava muito espaço em escaninhos. Para conter uma obra volumosa, como um tratado filosófico, por exemplo, eram necessários muitos rolos. Por isso, o papiro era um suporte mais adequado a documentos oficiais, de chancelaria.

 

Imagem 5

Anônimo. Busto masculino, afresco, Herculano – Itália, séc. I a.C. Museo archeologico nazionale di Napoli, inv. nr. 9072.

Um homem jovem lê em um rolo de papiro.

 

Por sua vez, o códice era o livro manuscrito. Surgiu no século I de nossa era, em Roma, (85 ou 86) e se difundiu pelas comunidades cristãs entre os séculos I e III, provavelmente, para se diferenciarem da tradição judaica (Carron; Guillouët 2009, pp. 592-594). Por todos esses motivos, os romanos desenvolveram o códice (codex), como um formato mais prático, tanto para a escrita quanto para a leitura. Sua difusão se deu pari passu com a difusão do Cristianismo no Império, a ponto de, no início do século IV, ambos os suportes se equipararem no uso dos escritores e copistas (Roberts; Skeat 1983, pp. 1-75). O formato compacto do códice e sua praticidade logo ganharam o gosto do pragmático espírito romano, como se vê em um poema de Marcial (38-104):

 

Tu que desejas ter contigo, em toda parte, meus livrinhos,

e que procuras companheiros para uma longa viagem.

compra estes, que o pergaminho condensa em pequenas tabuinhas.

Guarda na estante os grandes; quanto a mim, apanha-me uma única mão.

Para que não ignores, pois, onde estou à venda e ande incerto,

por toda a cidade, estarás seguro com minha orientação:

procura o Secundo, liberto do douto Lucense,

na porta do templo da Paz, atrás do foro de Palas

(Mafra 1985, p. 88).

 

Imagem 6

Fragmento do Codex Gregorianus (c.291-294), compêndio de pronunciamentos legais de imperadores romanos dos séculos II-III.

 

III. CRISTO, CÓDICES, CRISTÃS

 

Et ecce audio vocem de vicina domo cum cantu dicentis et crebro repetentis, quasi pueri an puellæ, nescio: ‘Tolle, lege; tolle, lege’” (S. Aurelii Augustini 2013) [Eis que, de súbito, ouço uma voz vinda da casa próxima. Não sei se era de menino, se de menina. Cantava e repetia frequentes vezes: – “Toma e lê; toma e lê”] (Santo Agostinho 1990, p. 205).


Nos primeiros séculos do Cristianismo, o amor aos livros (códices) e aos estudos foi a muito custo foi mantido pela Igreja Católica, única instituição a sobreviver à queda do Império Romano do Ocidente, em 476, haja vista que nenhuma biblioteca greco-romana sobreviveu ao cataclisma bárbaro (Thomson 1990, p. 48). Um dos motivos para isso é o fato de que as bibliotecas públicas romanas estavam localizadas nas capitais e principais cidades, ou seja, nos primeiros locais pilhados pelos invasores, formados por uma multitude de povos de diferentes origens que não possuíam cultura letrada, o que contribui para uma sensível baixa do nível global das letras (Barbier 2023/2, pp. 64-65).


Como mantenedora de textos quase perdidos em meio à violência daqueles tempos, a Igreja criou um modelo arquivístico para a recém fundada biblioteca pontifícia, criada pelo papa Dâmaso I (305-384). Posteriormente, o seu acervo foi transferido para o Palácio de Latrão – anteriormente conhecido como Domus Laterani, uma propriedade da gens Plautia (Speciale 1991). Após a fundação da biblioteca pelo papa Agapito I (c.490-536), as duas se tornaram as antecessoras da atual Biblioteca Apostólica Vaticana (Storia 2024). 


O esmero e a preocupação da Igreja em preservar os livros para seus futuros leitores estão expressos em uma passagem da Vida de Santo Agostinho, escrita por Possídio de Calama (†c.437), na qual disserta acerca da morte do bispo africano, em 430: “Testamentum nullum fecit, quia unde faceret pauper Dei non habuit. Ecclesiae Bibliothecam omnesque códices diligenter posteris custodiendos sempre iubebat” [Não fez qualquer testamento porque, como pobre de Deus, nada tinha para deixar. Sempre determinou que a Biblioteca da Igreja e todos os seus códices fossem cuidadosamente guardados para a posteridade] (San Posidio 1994, p. 363).


O imaginário que se formou ao longo de milênios em torno do sábio e seus livros disseminou uma cultura visual com figuras solitárias escrevendo ou lendo, à frente de seu armarium, repleto de códices. A imagem 7 é uma iluminura inglesa do século VIII que representa Esdras, o Escriba, sacerdote e líder do povo judeu, que viveu no séc. V a.C. O Livro de Esdras, do Antigo Testamento bíblico (Esdras 7:6), mostra que o monarca babilônico Artaxerxes I (497-427 a.C.) reconheceu o saber do escriba: “Esdras subiu de Babilônia. Era um escriba versado na Lei de Moisés, dada por Iahweh, o Deus de Israel. Como a mão de Iahweh, seu Deus, estava sobre ele, o rei lhe concedeu tudo o que pediu” (Bíblia 2013, p. 635).

 

Imagem 7

Esdras, o Escriba. Codex Amiatinus (c.700). Iluminura, Biblioteca Laurenziana – Florença, MS Amiatinus 1, folio 5r. Fonte: DE HAMEL 2017, pp. 80-81.

 

Juntamente com o amor aos livros por parte dos cristãos, naqueles primeiros séculos do Cristianismo, a participação das mulheres na cultura letrada foi fundamental. As cartas de São Jerônimo (c.342-420) a Paula (347-404) e a Marcela (325-410) atestam a importância da leitura e compreensão das Escrituras para uma sólida conversão (San Jerónimo 2013, pp. 234-315). Aliás, a biblioteca de Marcela era provavelmente bem provida de obras gregas – nas classes elevadas, mulheres instruídas eram um fenômeno muito comum (Brown 1990, pp. 303-304). Já Melânia, a Jovem (c.383-439) era, de fato, uma amante dos livros: adquiria-os com frequência, tomava-os por empréstimo ou mesmo os copiava, diariamente, com uma elegante caligrafia! (Giardina 1994, p. 278). Essas mulheres eram romanas aristocráticas, letradas e cultas, além de recentemente convertidas, como um desdobramento social real e cristão da tradição clássica das doctae puellae (González Saavedra 2012, p. 61).


Podemos visualizar uma delas na imagem 8, na qual o busto da jovem Safo está em um medalhão violeta que se destaca contra a parede branca. Ela segura na mão esquerda um políptico de quatro tábuas e na direita um estilete que, afetivamente, traz para os lábios, em uma atitude meditativa, momento antes de escrever. O afresco, que acompanhava um retrato masculino, foi elaborado conforme um esquema imagético tradicional. Com seu tema da docta puellae, ele indica que a menina pertencia a uma família culta e rica.

 

Imagem 8

Anônimo. Retrato de Safo, 37 x 36 cm, afresco sobre gesso, c.55-79, 4° estilo pompeiano, Casa VI, 17 (Insula occidentalis), descoberto no ano de 1760, em Pompéia. Museo Archeologico Nazionale di Napoli, sala LXXVIII, inv. 9084.

 

Foi um gradativo processo cultural de interiorização, de uma descompromissada leitura literária, quase pagã, ligada ao lazer, para uma comprometida leitura concentrada e atenta, cristã (imagem 9). Dos papiros e tabuinhas pagãos para os códices cristãos (Cavallo 1998, p. 96).

 

Imagem 9

Anônimo. São Mateus escreve em um códice, inspirado por um anjo, mosaico, século VI, Basílica de São Vital, Ravena  Itália. A seus pés, um cesto redondo com vários papiros. A cena é uma maravilhosa síntese da crucial mudança do suporte dos textos.

 

IV. FUNDADORES CULTURAIS DA EUROPA: BENTO DE NÚRSIA (480-547) E CASSIODORO (C.485-585)

 

Na Idade Média, os livros foram provavelmente mais decisivos na elaboração de teorias do que na Antiguidade e na Idade Moderna. Certamente, o Sócrates platônico explicava seu itinerário filosófico seguindo o fio de leituras de filósofos pré-socráticos, mas em seu conjunto a filosofia antiga surgiu do contexto imediato dos problemas políticos do momento [...] Em comparação, a filosofia medieval foi muito mais livresca [...] Um dos interesses básicos da filosofia medieval foi a harmonização das vozes discordantes no contexto da tradição (Flasch 2006, p. 138).

 

Kurt Flasch está certo: o Cristianismo é uma religião do Livro – aliás, como o Judaísmo e, posteriormente, o Islamismo (Walther; Wolf 2014, pp. 11-12). Está essencialmente ligado à escrita (Barbier 2023/2, p. 68). Além de viver do livro – diferentemente do Islamismo, por exemplo, em que o Alcorão regula a vida dos muçulmanos –, o Cristianismo crê que Cristo é o Verbo – λóγος, em grego – encarnado e vivo: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”, presente em João1:1 (Bíblia 2013, p. 1842). Ou seja, Cristo é a palavra pensada meditada e refletida. Ele é a plenitude do pensamento.

 

Imagem 10

Anônimo. São Mateus escreve seu Evangelho em um códiceEvangelhos de Lindisfarne, iluminura, c.710-720. Cotton Nero D. IV, folio 25v, British Library.

Sua representação no Tetramorfos (um anjo, nesse caso manuscrito com um livro e uma trombeta). Um homem aureolado, também com um códice, desponta por trás da cortina e presencia a cena. Nos primeiros séculos da expansão do Cristianismo na Europa, muitos iluminadores de manuscritos que decoraram as Escrituras (e evangeliários, saltérios etc.) representaram os quatro evangelistas redigindo seus respectivos evangelhos. Assim, firmaram essa imagem na tradição manuscrita: um homem com um livro, escrevendo, absorto, meditando o que escreveu. Consolidaram imageticamente o vínculo cultural entre a fé e o texto.

 

Um dos motivos basilares da importância dos livros para a formação espiritual na Idade Média foi o protagonismo das Sagradas Escrituras na conversão consciente (1Timóteo 4:12-15):

 

Que ninguém despreze a tua jovem idade. Quanto a ti, sê para os fiéis um modelo na palavra, na conduta, na caridade, na fé, na pureza. Esperando a minha chegada, aplica-te à leitura, à exortação, à instrução. Não descuides do dom da graça que há em ti, que te foi conferido mediante profecia, junto com a imposição das mãos do presbitério. Desvela-te por estas coisas, nelas persevera, a fim de que a todos seja manifesto o teu progresso (Bíblia 2013, p. 2072).

 

O instrumento material que auxiliou a trilha dessa via do ser foi a Bíblia (Miguel Aldaz 2014). O amor aos livros profanos, naturalmente, daí decorreu (Rouge; Armanet; Desmedt 2014). As bibliotecas surgiram como espaços ideais para a meditação sobre aquelas palavras escritas (Cartwright 2019). Uma das primeiras obras dessa nova tradição considerativa foi a o Vivarium, do estadista e escritor romano Cassiodoro (c.485-585).

 

IV.1. Vivarium, locus amoenus

 

Antes de se retirar da vida pública, Cassiodoro foi um político: questor (507-511), cônsul ordinário (514), prefeito da pretoria (533) e chanceler real – magister officiorum –, no decorrer de trinta anos (Banniard 2013, p. 45). Toda sua via percorreu o reinado de Teodorico, o Grande (454-526), rei ostrogodo – e cristão ariano – da Itália (Duffy 1998, p. 22). Ele também foi um literato autor de uma vasta e notável obra: tratados históricos, filosóficos e gramaticais, além de panegíricos e cartas (Stoppacci 2014, pp. 469-470).


Cassiodoro foi contemporâneo do poeta romano Boécio (c.477-524), Autor de uma das obras mais influentes na Idade Média: a Consolação da Filosofia (Severino Boécio 2023). Como ele, Cassiodoro ansiou transmitir aos pósteros a cultura da Antiguidade. Como era católico, com o papa Agapito I (c.490-536), ele planejou a fundação de uma escola de estudos cristãos em Roma, mas o projeto foi abortado por causa da Guerra Gótica (535-554), estopim bélico que o obrigou a se exilar com o papa Vigílio (c.500-555) em Constantinopla (Stoppacci 2014, p. 469. Com o fim da guerra, com a idade de cerca de sessenta anos, ele retornou para a Itália, quando decidiu se retirar da vida pública e fundar um mosteiro em uma de suas propriedades, possivelmente, em Squillace, na Calábria (Sul da Itália), conhecida na época como Vivarium ou Castellum.

 

Imagem 11

Anônimo. Representação do mosteiro Vivarium, com destaque para seus tanques de piscicultura. Institutiones (séc. IX), Mainz, Universität Würzburg.

 

Além do mosteiro, em Vivarium havia uma biblioteca, um scriptorium – aposento preparado para o trabalho de copiar e ilustrar (iluminar) manuscritos (Kauffmann 2003) – e um viveiro para a criação de peixes (imagem 11). De acordo com o próprio Cassiodoro:

 

A localização do Monastério Vivariense vos convida a preparar muitas coisas aos peregrinos e necessitados, uma vez que tendes jardins irrigados e, próximo a eles, as águas do Rio Pellena que é repleto de peixes e que não deve ser tido como perigoso pelo tamanho de suas ondas nem como desprezível por sua pequenez [...] Há também mares que vêm até vós, abertos de tal modo a pescadores que, quando desejardes, a pesca pode ser colocada nos viveiros. Pois, fizemos lá, com a ajuda do Senhor, tanques apropriados onde a multidão de peixes possa vagar sob o fiel monastério [...] Ademais, mandamos que construíssem banhos, aptamente preparados a corpos doentes, onde fluem propícias águas transparentes, que são perfeitas tanto para beber como para tomar banho (Cassiodoro 2018, p. 123).

 

No Vivarium, Cassiodoro lançou um programa cultural baseado no estudo do Trivium –Gramática, Dialética e Retórica – e no Quadrivium – Aritmética, Geometria, Música e Astronomia (Minois 2023, p. 78). Essas disciplinas já haviam sido apresentadas como auxiliares – servas – da Filologia na obra do escritor Marciano Capela (360-428): Sobre o Casamento da Filologia e Mercúrio – De Nuptiis Philologiae et Mercurii, fl. 410-420 (Cardigni 2018). Esse texto serviu de base curricular para toda educação Ocidental, do século V até, pelo menos, o Renascimento do séc. XII (Silva; Costa 2021, p. 91).


As disciplinas do Trivium foram assim definidas por Cassiodoro:

 

A gramática é a arte de discursar com beleza, uma habilidade que adquirimos através dos poetas e autores ilustres (Inst., Livro II, cap. I, 1) (Cassiodoro 2018, p. 149).

 

A retórica é a ciência do bem falar acerca de questões civis (Inst., Livro II, cap. II, 1) (Cassiodoro 2018, p. 153).

 

Varrão definiu a dialética e a retórica em Nove livros das disciplinas, usando a seguinte comparação: “Dialética e retórica são o punho fechado e a palma aberta da mão de um homem”. Uma encerra os argumentos numa breve oração, a outra percorre os campos da eloquência com um discurso abundante; uma contrai a linguagem, a outra a distende (Inst., Livro II, cap. III, 2) (Cassiodoro 2018, p. 167).

 

E o Quadrivium:

 

Os escritores das letras seculares estabeleceram a aritmética como a primeira entre as disciplinas matemáticas, porque a música, a geometria e a astronomia, que a seguem, precisam dela para explicar suas noções (Inst., Livro II, cap. IV, 1) (Cassiodoro 2018, p. 197).

 

Ao tratar da Música, Cassiodoro nos proporcionou uma de suas mais belas definições:

 

A música difunde-se por todos os atos de nossa vida à medida que praticamos, sobretudo, os mandamentos do Criador e obedecemos de coração puro às regras por Ele instituídas. O que quer que digamos, o que quer que nos mova desde dentro pelo pulsar das veias, está associado pelos ritmos musicais à força da harmonia. A música é, como se vê, a ciência da correta modulação. A ela nos ligamos quando fazemos uso do bom convívio em nossas relações.

[...]

Mas quando praticamos iniquidades, já não possuímos música. O céu, a terra e todas as coisas neles realizadas pelo governo divino estão vinculadas à disciplina musical; ora, Pitágoras atesta que este mundo foi criado e pode ser governado por meio da música (Inst., Livro II, cap. IV, 2) (Cassiodoro 2018, p. 211).

 

E, por fim, a Geometria e a Astronomia:

 

Voltemo-nos agora à geometria, que é a descrição especulativa das formas e a prova visível de que dispõem os filósofos [...] Tudo o que é bem arranjado e acabado pode ser atribuído às qualidades dessa disciplina [...] A geometria é, em verdade, a ciência da extensão imóvel e das formas (Inst., Livro II, cap. VI, 1 e 2) (Cassiodoro 2018, pp. 219-221).

 

Resta tratar da astronomia. Se a buscamos com espírito moderado e casto, ela esclarece nossas ideias, como dizem os antigos, com grande luminosidade. É como subir com a alma até os céus, examinar racionalmente toda aquela máquina suprema e colher, em parte, com a sutileza contemplativa da inteligência, o que os mistérios de tanta grandeza esconderam. Ora, diz-se que o próprio mundo foi encerrado na circularidade esférica para encerrar as formas das coisas no espaço circular de sua órbita. Donde Sêneca compôs um livro em forma de diálogo, como é costume entre os filósofos, cujo título é Da forma do mundo. Livro que também vos deixamos para ler [...] A astronomia é, portanto, como já foi dito, a ciência que versa sobre o curso dos astros no céu. Ela investiga todas as formas e percorre as configurações das estrelas em relação a si mesmas e à Terra (Inst., Livro II, cap. VII, 2, 1 e 2) (Cassiodoro 2018, p. 223).

 

A proposta de Cassiodoro em suas Instituições foi preservar o patrimônio cultural antigo. Por isso, na biblioteca de Vivarium figuravam obras gregas: Homero (séc. VIII a.C.), Hipócrates (c.460-370 a.C.), Platão, Aristóteles (384-322 a.C.), Euclides, Arquimedes (c.287-212 a.C.), Galeno e Ptolomeu (c.100-170). Além de autores latinos: Ênio (c.239-169 a.C.), Terêncio (c.195-159 a.C.), Varrão (116-27 a.C.), Cícero, Lucrécio (c.99-55 a.C.), Salústio (86-35 a.C.), Virgílio (70-19 a.C.), Horácio (65-8 a.C.), Sêneca (4 a.C.-65), Plínio, o Velho (23-79), Quintiliano (c.35-95) e Macróbio, que viveu entre 340 e 430 (Flasch 2006, p. 138).

 

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Anônimo. Entronado, Cassiodoro apresenta seu livro, letra capitular “C”, século XII, Vault Case Manuscript 8, Institutiones, folio 1r.

A Idade Média nunca se esqueceu do autor das Instituições.

 

Após sua morte, a biblioteca de Vivarium desapareceu sem deixar vestígios. Alguns de seus livros foram para a biblioteca papal, outros para bibliotecas de cidades episcopais, como Pavia, Milão, Ravena e Verona. Contudo, o mais importante fora semeado: se não fosse o trabalho de seus monges copistas em Vivarium, possivelmente não teríamos conhecido as obras clássicas completas, com exceção das de Virgílio (Previté-Orton 1967, p. 404). Por tudo isso, Cassiodoro é considerado um dos pais da Idade Média, não só por ter defendido a sabedoria antiga, a leitura dos clássicos e a necessidade de copiar suas obras para que não desaparecessem, mas sobretudo, por ter influenciado Isidoro de Sevilha (c.560-636), Beda, o Venerável (c.672-735) e Alcuíno de York (c.735-804), alguns dos maiores filósofos do Cristianismo (M. Colombás 1990, p. 418).

 

IV.2. Bento de Núrsia e a centralidade beneditina da leitura

 

Contemporâneo de Cassiodoro, Bento de Núrsia foi declarado “Patrono da Europa” pela Igreja Católica, por determinação papal do ano de 1964 (Pablo VI 2024). Com sua Regra instituída por volta do ano de 530 (São Bento de Núrsia 2024), São Bento fundou um programa de vida, com disciplina e moderação, ordem e obediência, além de uma hierarquia na igualdade (M. Colombás 1990, p. 24). Após sua morte, a Regra Beneditina recebeu a bênção do papa Gregório Magno (c.540-604):

 

[...] o homem de Deus, além dos muitos milagres pelos quais se destacou no mundo, também se tornou notavelmente célebre em virtude da palavra de sua doutrina. Com efeito, escreveu uma regra monástica que é notável pelo espírito de discernimento e clara pela sua linguagem. Se alguém quiser conhecer mais profundamente a sua vida e os seus costumes, poderá encontrar na própria doutrina da regra os princípios de seu magistério, haja vista que o homem santo não poderia de nenhum modo ensinar outra coisa a não ser aquilo que ele mesmo viveu (São Gregório Magno 2023, p. 180).

 

Graças à Regra e ao apoio do papado, a Ordem Beneditina espalhou-se pela Europa. Para o tema que aqui nos interessa, a ela criou escolas monásticas por todo o continente que, pelas circunstâncias históricas refratárias ao estudo, se transformaram em refúgios da cultura intelectual (Nunes 2018). Na Regra, há determinações expressas para que os monges beneditinos se dediquem à leitura:

 

Capítulo 38 - Do leitor semanário

1. Às mesas dos irmãos não deve faltar a leitura; não deve ler aí quem quer que, por acaso, se apodere do livro, mas sim o que vai ler durante toda a semana, a começar do domingo.

[...]

Capítulo 48 - Do trabalho manual cotidiano

1.        A ociosidade é inimiga da alma; por isso, em certas horas devem ocupar-se os irmãos com o trabalho manual, e em outras horas com a leitura espiritual [...].

4. Da hora quarta até mais ou menos o princípio da hora sexta, entreguem-se à leitura [...].

10. De 14 de setembro até o início da Quaresma, entreguem-se à leitura até o fim da hora segunda [...].

13. Depois da refeição, entreguem-se às suas leituras ou aos salmos.

14. Nos dias da Quaresma, porém, da manhã até o fim da hora terceira, entreguem-se às suas leituras, e até o fim da décima hora trabalhem no que lhes for designado.

15. Nesses dias de Quaresma, recebam todos respectivamente livros da biblioteca e leiam-nos pela ordem e por inteiro.

16. esses livros são distribuídos no início da Quaresma [...].

23. Também no domingo, entreguem-se todos à leitura, menos aqueles que foram designados para os diversos ofícios.

24. Se, entretanto, alguém for tão negligente ou relaxado, que não queira ou não possa meditar ou ler, determine-se-lhe um trabalho que possa fazer, para que não fique à toa (São Bento de Núrsia 2024).

 

Ora et labora (Meeuws 1992, pp. 193-219). Acrescente-se que o termo labora não diz respeito apenas ao trabalho manual, mas também inclui, como se percebe nas passagens acima da Regra, a leitura, o estudo – e, consequentemente, a meditação do que se leu, além do trabalho de copiar textos para enriquecer a biblioteca do mosteiro (Barbier 2023/2, p. 81). Scienter nescia et sapienter indocta [conscientemente ignorante e sabidamente sem instrução], trata-se da douta ignorância beneditina, incessante (e instigante) paradoxo na vida cultural da Igreja (Leclercq 2012, p. 21).


Tal perplexidade existencial da associação beneditina do trabalho manual com o trabalho intelectual (ou da vida ativa com a vida contemplativa) é mais do que isso. O sintético aforismo da douta ignorância, posteriormente desenvolvido por Nicolau de Cusa (1401-1464), não significa que devemos aceitar passivamente nossas dificuldades compreensivas (Nicolau de Cusa 2012). Pelo contrário: ele expressa a ideia de que o reconhecimento, tanto de nossa insignificância intelectual quanto nossa pequenez diante do universo, são pressupostos fundamentais para a verdadeira aquisição do conhecimento, predisposição livre de preconceitos, com a mente e o coração abertos e espontaneamente dispostos a apreender as maravilhas da Criação (Leclercq 2012, pp. 27, 28)


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Anônimo. Regula Sancti Benedicti, século XII, Saint Gilles, Nîmes – França. BL Add MS 16979, folio 21v.

Um livro de presente: entronado, São Bento (à esquerda) presenteia sua Regra a São Mauro (seu primeiro discípulo), admoestando-o a segui-la, enquanto outros dois monges observam a cena e comentam.

 

A tradição beneditina logo desenvolveu um conceito amplo, o de “paisagem cultural”: a biblioteca como o epicentro de um ambiente total, além de abrigar o reservatório livresco propriamente dito, ser um local para leitura e cópia de obras manuscritas (Barbier 2023/1, p. 11). Diretamente ligada a seu mosteiro, a biblioteca é um privilegiado lugar de estudos (Benvenuti 2014, p. 152).

 

V.    NAS TREVAS, LUZES: SANTO ISIDORO DE SEVILHA (c.560-636) E SÃO BONIFÁCIO (c.672-754)

 

De Bento a Isidoro, quase um século se passou. A cultura recuou – foram tempos particularmente difíceis para os amantes da leitura e das bibliotecas. Por volta do ano 600, epicentro da vida de Isidoro de Sevilha, a maior parte dos mosteiros espalhados pela Europa não tinha interesse pela cultura. Suas bibliotecas abrigavam, basicamente, livros litúrgicos e a Bíblia, mas, quase nada de literatura clássica (Flasch 2006, p. 139). Em contrapartida, as sementes foram plantadas: por exemplo, no reino merovíngio, as bibliotecas das recém-fundadas abadias de Sainte-Geneviève (c.520), Saint-Germain-des-Prés (558) e a de Saint-Denis (c.650) tornam-se, pouco a pouco, as mais ricas do reino até, pelo menos, o final de Antigo Regime, já nos séculos XVIII e XIX (Barbier 2023/2, p. 82).


Em tal contexto refratário às letras, ainda que frutuoso, não deixa de ser extraordinário o surgimento em cena do bispo Isidoro de Sevilha (Durant, 1985, p. 86). Como a ele se referiu Bráulio (c.590-651), também bispo visigodo, mas de Zaragoza: “Depois de tanta miséria, Deus fez surgir, creio eu, para restaurar os monumentos dos antigos e apartar de nós em qualquer ocasião o envelhecimento da ignorância e o colocou próximo de nós como um tutor” (apud Paul 2003, p. 139).


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Anônimo. Isidoro de Sevilha escreve suas Etimologias. Iluminura, Aber deen University Library, Univ. Lib. MS 24 (Aberdeen Bestiary)folio 81r.

 

Sua obra mais famosa, as Etimologias, foi redigida graças à sua vultosa biblioteca, mas sobretudo, por sua refinada educação, provavelmente, adquirida na escola episcopal de Sevilha – esses centros episcopais hispânicos eram, então, herdeiros diretos das antigas escolas municipais do Império Romano (Días y Días 2000, p. 105).


Para redigir seu opus magnum, Isidoro se valeu tremendamente da cultura clássica. Um levantamento feito de suas citações dá o mapa de sua vasta cultura profana, de modo semelhante a Cassiodoro, porém ainda mais amplo: de Virgílio, são duzentas e sessenta e seis citações, nominalmente, mais de cem vezes; de Cícero, são cinquenta e sete citações, sendo trinta e nove nominais; de Lucano (39-65), são quarenta e cinco citações, sendo trinta e duas nominais. Além desses, temos mais citações, com uma média de quinze citações para cada um: os dramaturgos Ênio e Plauto (230-180 a.C.), Terêncio, Lucrécio, Salústio, Horácio, além dos poetas Ovídio (43 a.C.-17 d.C.) e Marcial. Entre os autores cristãos Isidoro citou Ambrósio de Milão (340-397), os poetas Prudêncio (348-413), Dracôncio (c.455-505) e Sedúlio (século V), além de Jerônimo, Paulino de Nola (354-431) e Agostinho (Días y Días 2000, pp. 193-194).


No que se refere às sete artes liberais – a reunião do Trivium e do Quadrivium –, Isidoro dá um passo a mais em relação a Cassiodoro e não só as define, mas aprofunda seus conteúdos. Assim, a obra passa a ter um novo e original caráter, quer seja, consultivo e enciclopédico, além de cumprir a admirável função de ser um seguro canal de transmissão da cultura antiga à Idade Média (Ribémont 2013, p. 64).

 

V.1. Sobre as bibliotecas

 

No Livro VI de suas Etimologias, Isidoro aborda a temática intitulada Dos livros e ofícios eclesiásticos, no qual, de modo sucinto, define e historiciza a ideia de biblioteca (Livro VI, 3):

 

1. O termo biblioteca foi herdado do grego, e é lá que os livros ficam armazenados, já que biblíon significa “livro”, e theka, “lugar em que se coloca algo”.

2. Os livros do Antigo Testamento foram reparados por Esdras, escriba do Antigo Testamento, inspirado pelo Espírito Santo, após terem sido queimados pelos caldeus enquanto os judeus voltavam a Jerusalém. Ele organizou todo o Antigo Testamento em vinte e dois livros, de modo que havia na Lei tantos livros quantas as letras do alfabeto. (imagem 7)

3. Acredita-se que Pisístrato, tirano ateniense, foi o primeiro entre os gregos a fundar uma biblioteca que, depois de ser enriquecida pelos atenienses, foi trasladada para a Pérsia por Xerxes após o incêndio de Atenas. Muito depois, Seleuco Nicátor a fez regressar à Grécia.

4. Desde então, reis e várias cidades desejaram ter volumes de diversas procedências e traduzi-los para o grego por intérpretes.

5. Alexandre Magno e seus sucessores tiveram todo o interesse em dotar as bibliotecas com todo o tipo de livros. Especialmente Ptolomeu Filadelfo, o mais profundo conhecedor de toda a Literatura, tratou de emular a Pisístrato em seu cuidado pelas bibliotecas e dotou a sua própria não só de obras dos gentios, mas também das Sagradas Escrituras. Em sua época estavam catalogados em Alexandria setenta mil livros (San Isidoro de Sevilla 2000, pp. 576-579.

 

A passagem acima das Etimologias mostra a relação direta que Isidoro estabelece entre o suporte do livro, cristão – o códice – e a tradição religiosa católica. Inclusive, cronologicamente: da Grécia para o universo judaico, ao citar nominalmente o sacerdote (e escriba) Esdras (עזרא, fl. 480-440 a.C.), personagem fundamental para restaurar as escrituras judaicas após o retorno do cativeiro babilônico (imagem 7). Do rolo de papiro para o códice. Da Grécia e da tradição judaica para o códice e a tradição cristã (Schama 2015, pp. 56-58). Mas Isidoro não se esqueceu de Roma. Logo a seguir se volta para o mundo romano para, depois, tratar de “nossas bibliotecas” (Livro VI, 5-6):

 

5.1. O primeiro a suprir Roma com livros foi Emílio Paulo, após a derrota de Perseu, rei dos macedônios; depois dele, Lúculo, dos despojos do Ponto. A seguir, César confiou a Marco Varrão a missão de construir uma grande biblioteca.

5.2. O primeiro a abrir em Roma uma biblioteca pública foi Polião, com obras gregas e latinas acrescidas com imagens dos autores no átrio, magnificamente dispostas à mão.

[...]

6.1. Entre nós, foi o mártir Pânfilo, cuja vida foi escrita por Eusébio de Cesareia, o primeiro a se esforçar para se igualar a Pisístrato no estudo da biblioteca sagrada. Chegou a ter em sua biblioteca cerca de trinta mil volumes.

6.2. Também Jerônimo e Genádio procuraram por todo o orbe obras de escritores eclesiásticos, catalogando-as ordenadamente, e reuniram em pequeno índice de um volume os trabalhos daqueles autores (San Isidoro de Sevilla 2000, pp. 580-581).

 

Como se percebe na passagem acima, Isidoro determina que os primeiros cristãos a terem uma biblioteca viveram ao redor do século IV, e tiveram interesses sobretudo teológicos. Essa afirmação do bispo de Sevilha não era novidade para os cristãos cultos. Isso fora constatado na História Eclesiástica, do bispo Eusébio de Cesaréia (c.260-339). Segundo ele, seu professor (e amigo) Pânfilo (†309), mártir, tinha grande zelo pelas coisas divinas e conseguiu reunir em sua biblioteca muitas obras de escritores eclesiásticos – como reafirmará Isidoro, trezentos anos depois, no Livro VI, 32, 3 de sua Historia Eclesiastica (Eusebio de Cesarea 1998, p. 403). Mais: Eusébio nos informa no Livro VI, 20, 1 da mesma obra que, em seu tempo, ainda existia a Biblioteca de Élia – a mais antiga biblioteca cristã com datação comprovada, originalmente fundada por Alexandre – onde ele pôde reunir material para escrever sua História (Eusebio de Cesarea 1998, p. 196).


Isidoro inicia suas Etimologias (Livro I, 2) com as sete artes liberais, baseando-se em Cassiodoro. São artes, escreve ele, porque se baseiam em regras, e tratam do que é verossímil e opinável. A Gramática é a perícia no ato de falar e a Retórica, a eloquência. A Dialética separa o verdadeiro do falso. A Aritmética fundamenta os números e a Música, as métricas e os cantos. A Geometria se baseia nas medidas e nas dimensões terrenas e a Astronomia, nas leis dos astros (San Isidoro de Sevilla 2000, pp. 276-277).


O bispo de Sevilha teve à sua disposição mais fontes do que Cassiodoro – certamente sua biblioteca era mais diversificada que a do estadista e escritor romano. Para tratar da Gramática (um verdadeiro tratado nas Etimologias!) – além de, literalmente, citar Aristóteles, Ênio, Varrão, Virgílio, Lucano e Donato (c.310-380) –, Isidoro se baseia em Cícero, Quintiliano, Agostinho, Jerônimo, Pompônio Porfirião (séc. III, gramático africano comentador de Horácio), Diomedes, o Gramático (séc. IV), Flávio Sosípater Carísio (séc. IV), Mário Sérvio Honorato (séc. IV) e Prisciano (fl. 500).


Para que o leitor tenha uma ideia da riqueza expositiva e da erudição de Isidoro de Sevilha, na seção dedicada aos tropos – expressões em sentido figurado, como metáforas, catacreses, metalepses, metonímias etc. –, Isidoro oferece exemplos literários para cada um deles (Silva; Costa 2021, p. 93). A mesma metodologia é aplicada para a Retórica. Há uma passagem importante que trata da “coerência”, isto é, a obrigatória organicidade entre discurso e prática – que Isidoro chama de “pureza latina”, provavelmente, devido à tradição romana da “palavra dada”. Baseando-se em Cícero (2024), Isidoro descreve a “Retórica”, ainda em sua Etimologias (II, 1, 1-2; 3, 1, e 16, 2):

 

A Retórica é a ciência de falar bem nas questões cívicas e com os adequados recursos da eloquência para persuadir o que é justo e o que é o bem. O nome Retórica deriva do grego rhetorídsen, que quer dizer “recurso da palavra”, já que entre os gregos “palavra” se chama rhésis e, orador, rhétor. A Retórica está inseparavelmente ligada à arte da Gramática. Com a Gramática aprendemos a falar corretamente e, com a Retórica, a expor os conhecimentos adquiridos.

[...]

O orador é um homem bom, perito na arte de falar. A retidão do homem se baseia em sua natureza, em seus costumes e em suas qualidades. Sua experiência se baseia em uma eloquência regulada por normas e que tem cinco partes: invenção, disposição, elocução, memória e pronunciação.

[...]

Fala com pureza latina aquele que utiliza palavras apropriadas e verdadeiras sem se distanciar da maneira de falar e da elegância próprias da época em que vive. Quem se expressa dessa maneira não considera suficiente meditar o que diz, mas dizê-lo com clareza e de modo suave. Mais: deve praticar o que diz! (Costa 2019, p. 371).

 

Em outras palavras: é condição sine qua non para a educação católica praticar a ética que está intrínseca – e deve ser ressaltada – nos conteúdos ensinados. É a tão ansiada harmonia entre atos e palavras, como admoestou o Cristo! (Mateus 1950, pp. 56-57). Sem Isidoro de Sevilha e seu metódico e bibliófilo trabalho de enciclopedista da tradição literária e científica da Antiguidade, a transmissão da cultura clássica teria sido praticamente impossível (Cabrera Valverde 1996, pp. 203-213).

 

V.2. Envie-me algumas faíscas da tocha que brilha em sua terra: São Bonifácio (c.672-754), apóstolo dos alemães

 

Justamente em tal período culturalmente declinante – mesmo com esparsas, porém brilhantes luzes, como Isidoro de Sevilha –, a Igreja deu um novo impulso à cultura cristã. O papa Gregório Magno, certo de que o mundo se aproximava do fim e, por isso, era preciso salvar almas enquanto fosse possível, enviou o monge beneditino Agostinho (†c.604), de temperamento “tristis et dubitans” (Garcia-Villoslada 2003, p. 38), com mais quarenta irmãos, às ilhas britânicas com o intuito de converter os saxões, um “povo bárbaro, selvagem e incrédulo”, como lembrou Beda, o Venerável, no Livro I, 23 de História Eclesiástica do Povo dos Anglos (Beda el Venerable 2013, p. 76). Agostinho levou livros e, com o tempo, muitos códices foram enviados de Roma à Inglaterra, especialmente a York – cidade fundada pelos romanos. Em 306, Constantino fora ali designado imperador e aceito pelas tropas (Leithart 2020, p. 63).


Aquela preocupação apocalíptica papal curiosamente desencadeou um notável processo livresco. Outro monge beneditino chamado Winfredo (c.672-754), originário de Devonshire, no reino de Wessex, foi educado nesse ambiente bibliófilo, nos mosteiros de Essex e Nursling – ambos fundadas pelos romanos (Le Goff 1984, p. 271). Em 718, Winfredo peregrinou até Roma e, ali, expôs ao papa Gregório II (669-731) seus planos missionários. Ele recebeu do pontífice o nome de Bonifácio, o apostolado das “gentes pagãs”. Em 732, obteve do papa Gregório III (†741) o pallium, o que lhe conferia o poder de fundar novas sedes episcopais (Mitre Fernández 2004, p. 800). Com a “mundeburdio” (2024), quer seja, a proteção direta do rei, nesse caso, do soberano dos francos, Carlos Martel (c.688-741), então em campanha militar na Baviera, Bonifácio viajou à Turíngia, Frísia e Hesse, onde realizou conversões, em especial, após cortar o Carvalho de Donar (por volta de 723), árvore sagrada para os pagãos germânicos. Essa façanha nos informa a Vida de São Bonifácio, hagiografia escrita por São Willibaldo, bispo de Eichstätt (c.700-787):

 

[...] naquela época, muitos hessianos foram trazidos para a fé católica e, confirmados pela graça do espírito septiforme, aceitaram a imposição de mãos; outros, ainda não confortados em suas almas, recusaram-se a aceitar integralmente as evidências da fé; outros praticavam secretamente aruspícios, adivinhações, conjurações e encantamentos, e outros faziam tudo isso abertamente. Alguns se voltavam para auspícios, presságios e introduziam rituais de sacrifícios. Mas também havia quem, por terem uma mente mais sã, abandonaram as profanações pagãs e não praticavam mais nenhuma dessas coisas.

Aconselhado por estes últimos, o santo tentou derrubar, em um lugar chamado Gésmere, um carvalho de extraordinário tamanho, chamado no antigo vocábulo pagão de Árvore de Júpiter, com os servos de Deus a seu lado. Confortado pela determinação de sua mente, ele cortou a árvore, na presença de muitos pagãos que, devota e diligentissimamente, amaldiçoavam o inimigo de seus deuses. Mas quando ele cortou um pequeno pedaço da árvore, imediatamente o enorme volume de carvalho, impulsionado por um sopro divino vindo do alto, quebrou o cume da palmeira e caiu. Como por um sinal superior se quebrou em quatro partes, e quatro enormes troncos iguais em comprimento apareceram sem qualquer trabalho dos irmãos presentes.

Ao verem isso, os devotos pagãos que antes abjetamente amaldiçoavam, voltaram atrás, tornaram-se crentes e abençoaram o Senhor. Então, aquele ancião da mais elevada santidade tomou conselho com os irmãos e construiu um oratório de madeira com o material da supracitada árvore e o dedicou em honra a São Pedro, o Apóstolo (apud Levison 1905).

 

Com a madeira do carvalho pagão derrubado, Bonifácio ergueu uma capela dedicada a São Pedro, próximo do futuro mosteiro de Fritzlar – atualmente, distrito de Schwalm-Eder (Favier 2004, p. 121). Quando foi enviado como missionário às terras germânicas com três outros monges, ele pediu que lhe enviassem livros da Inglaterra para as bibliotecas das novas sés episcopais (Mogúncia e Salzburg), e dos mosteiros que fundou, especialmente o de Fulda (Garcia-Villoslada 2003, pp. 42-43). Seu scriptorium, sua escola e, naturalmente, sua biblioteca, foram fundamentais para a difusão da conversão – e aculturação – da Europa, pelo menos até a época moderna (Barbier, 2023/2, p. 87). Três anos após proceder à unção real de Pepino, o Breve (c.714-768), em Saint-Denis, Bonifácio foi martirizado pelos frísios em 754 (Raiola 2014, p. 142. De acordo com Garcia-Villoslada (2003, p. 43), o detalhe de uma iluminura do Sacramentário de Fulda, do século XI, mostra que, em seu martírio, Bonifácio morre abraçado a um livro – que se conserva ainda hoje, tingido com o sangue do mártir, o dito livro é um tratado de Isidoro de Sevilha, De officiis ecclesiasticis!

 

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Anônimo. São Bonifácio converte um pagão e é martirizado. Sacramentário, 22,5 x 16,5 cm, século XI, Fulda. Msc. Lit. 1, folio 126v. Münchener DigitalisierungsZentrumStaatsbibliothek, Bamberg.

Apesar de ser uma iluminura impactante (tanto por sua moldura em folhagens laranjas, intenso colorido, traços irregulares que sugerem viva movimentação dos personagens e por seu fundo azul), trata-se de uma iluminura de pequenas dimensões que ocupa apenas uma parte da página.

 

Não é exagero afirmar que o trabalho de São Bonifácio lançou as bases culturais da cristandade medieval. Seu programa de construção e reforma seguiu os métodos da tradição romana. Suas fundações monásticas, especialmente Fulda, tornaram-se centros de cultura intelectual cristã, de ação missionária e de civilização material (M. Colombás 1991, pp. 66-67). Os mosteiros tomaram o lugar das cidades romanas, então moribundas, e permaneceram como centros de cultura até o desabrochar das cidades medievais e do ensino universitário no século XII (Dawson 2016, pp. 90-92).

 

CONCLUSÃO

 

Isidoro de Sevilha representa o desabrochar hispânico do longo e amoroso processo de cultivo das Letras, de paixão pelos manuscritos, da devoção à vida meditativa. São Bonifácio, por sua vez, é um exemplo de quão importantes foram os mosteiros medievais para a preservação das obras da Antiguidade. Por exemplo, à guisa de conclusão, somente no scriptorium de Fulda foram copiadas, entre outras, as seguintes preciosidades (Reynolds; Wilson 2013, p. 68):

 

1)    Ambrosianus L 85 sup. (com o De agricultura de Columela [4-70]);

2)    Bamberg Msc. Clas. 54 (Historia Augusta);

3)    Laurentianus 47, 36 (as Epístolas, de Plínio, o Jovem [61-113]);

4)    Leeuwarden 55 (as Noites áticas, de Aulo Gélio [c.125-180]);

5)    Tacitus Codex Laurentianus Mediceus 68.1. (os Anais de Tácito [c.56-120]);

6)    Vaticanus latinus 1874 e o Cassel Phil. 2° 27 (dois códices das Res gestæ de Amiano Marcelino [c.330-400]);

7)    Vaticanus latinus 3277 (as Argonáuticas, de Caio Valério Flaco [c.45-95]);

8)    Códice com o Diálogo dos oradores e a Germânia, de Tácito;

9)    Códice com a obra De re coquinaria de Marco Gávio Apicio (séc. I);

10)  Um dos códices da obra De rerum natura de Lucrécio;

11)  Ms. 8 da Biblioteca do conde Baldeschi-Balleani (com De grammaticis et rethoribus, de Suetônio [c.69-122]).

 

Sem as sementes clássicas e os troncos monásticos alto-medievais, não existiriam as árvores dos renascimentos posteriores – nem as tradições bibliotecária, museológica e arqueológica da história do Ocidente. Somos gratos aos nossos antepassados europeus por terem legado a nós, pósteros, o cultivo à Arte, à Cultura, à Educação Superior.

 

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FONTES

 

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