Bárbara Dantas
* Se precisar citar, tê-lo como referência, seguir:
DANTAS, Bárbara. A inclusão digital, a mãe hodierna e uma pandemia. In: SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho et al. (orgs.). Maternidades plurais: os diferentes relatos, aventuras e oceanos das mães cientistas na pandemia. São Paulo: Bindi, 2020, p. 178-188.
OU
DANTAS, Bárbara. A inclusão digital, a mãe hodierna e uma pandemia. In: CARDOSO, Vanessa Clemente; CIDADE, Camila de Almeida Santos; SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho (orgs.). Maternidades plurais: os diferentes relatos, aventuras e oceanos das mães cientistas na pandemia. Goiania: CEGRAF - UFG, 2022, p. 178-188.
Disponível em: https://www.barbaradantas.com/post/a-inclus%C3%A3o-digital-a-m%C3%A3e-hodierna-e-uma-pandemia
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“Uma imagem vale mais do que mil palavras”.[1] A frase do jornalista sueco Kurt Tucholsky (1890-1935), famosa em todo o mundo, mereceu destaque logo na Introdução ao livro Testemunha Ocular (2001), de Peter Burke. Por isso, utilizarei imagens para demonstrar com maior ênfase o quanto a vida de uma mãe/pesquisadora é cheia de emoções, adversidades e trabalho duro. Mas, tudo isso, os filhos nos ensinam, imerso em muito amor e com um toque de feliz abnegação.
Minha vida acadêmica começou dias antes de uma Véspera de Natal, momento de reunião da família para o qual costumava fazer as sobremesas. Mas, naquele ano, tomei uma importante decisão: comuniquei à minha mãe de que não mais faria trabalhos manuais de artesanato, nem docinhos e coisinhas triviais. Dali em diante, dedicar-me-ia a estudar. Meus filhos eram bem pequenos, crianças levadas ainda, não me lembro bem quantos anos tinham nem em qual ano, com coragem, decidi ser estudante. Mas, lembro muitíssimo bem das circunstâncias em torno do casamento, do cotidiano e de um futuro incerto que me impulsionaram à "dedicação exclusiva" aos estudos.
Sempre fui apaixonada por livros e criei o hábito de ler a respeito de tudo porque fiz da leitura não só uma obrigação, mas antes, uma distração. Hoje, ganho a vida pelo que consigo aprender com minhas leituras, sejam as feitas por motivação profissional e acadêmica ou por aquelas que, habitualmente, realizo por diversão. Por vezes, junto as duas opções e me pego divagando em reflexões:
Fig. 1
Eis minha nova leitura de fim de semana, Goethe. Escritor contemporâneo ao pintor que pesquiso no doutorado: Nicolas-Antoine Taunay, fins do século XVIII e primeiras décadas do XIX. Ora, se minha intenção é encontrar elementos implícitos em uma obra de arte, no caso, pintura, nada melhor que pedir auxílio à literatura. E a modernidade nos legou esplêndidas obras nesse ramo.
Porém, notei o quanto o mercado editorial brasileiro perdeu com a morte do estimado mecenas, Victor Civita que, naquela época e por quase toda sua vida, foi proprietário da Editora Abril. Parece que as obras que primavam pela excelência no material (capa dura) e no conteúdo (a Apresentação da obra é inspiradora) morreram com ele.
Enfim, comprei este belo volume por apenas R$ 5,00 de um senhor que não sabe ler e vende livros dispostos sobre um lençol colocado no chão da calçada perto de minha casa. O bom disso é que não gastarei uma fortuna para adquirir "os clássicos", mas não deixa de ser lamentável o ponto que chegou a cultura brasileira.
Todas as gerações, desde o início das reclamações humanas, protestam que viver é muito tenso, duro e blá, blá, blá... pois bem, para diminuir estas dificuldades, nada como um toque, mesmo que breve e singelo, de amenidades. Minha receita envolve a literatura, a leitura diária e breve dos Grandes Clássicos.
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Apesar de sempre amar a leitura, minha atividade profissional já foi bem diversa desta de hoje, escrever e estudar. Tudo começou ainda na primeira infância quando, minha mãe, pessoa zelosa, apresentou-me às práticas esportivas por orientação médica porque nasci com asma, esse tormento que forjou meu ser. Devido a esta doença, que vez ou outra me faz perder (literalmente) a respiração, preciso me exercitar para manter pulmões e corpo fortes para diminuir a gravidade das crises. Passei, então, pelo balé, natação e cheguei ao bodyboarding. Já no fim da adolescência, e por quase dez anos, fui atleta profissional e esta foi minha primeira profissão. Eu viajava muito e na minha bagagem sempre estava um livro, claro!
Fig. 2
De 1996 a 2001 pratiquei o bodyboarding de competição. Comecei na categoria amadora e cheguei à profissional. Conheci todas as praias com ondas propícias para surfar no Estado do Espírito Santo, onde resido desde tenra idade, apesar de ser mineira de nascimento. No litoral brasileiro, pratiquei e competi em boa parte das mais belas e famosas praias para a prática do esporte. Também tive o prazer de surfar e conhecer outros países, suas cidades, outras línguas e praias paradisíacas com ondas espetaculares. Nos traslados: equipamentos, mala e livros. Participei de muitos eventos dos circuitos estaduais do Espírito Santo e Rio de Janeiro, além das etapas do circuito brasileiro e algumas etapas do circuito mundial.
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Após este período feliz no esporte profissional, retirei-me dos campeonatos para casar, ter filhos e estudar. Continuei a surfar por diversão por alguns anos, depois, passei por academias, corrida e estou no ciclismo.
Entre fraldas e bebês, iniciei meus estudos em História no Ensino Superior. Da faculdade particular, ingressei na UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) em 2009. No mesmo ano, também iniciei um estágio no MAES (Museu de Arte do Espírito Santo). Lá estive por dois anos. Fui monitora de público em diversas exposições temporárias com grande número de visitantes: gravuras de Rembrandt e de Tarsila do Amaral, instalações de Nuno Ramos, fotografias do Louvre, obras de Beatriz Milhazes e do artista capixaba Dionísio Del Santo, além de outras exposições de sucesso.
Fig. 3
Minha filha no MAES.
Minha ligação tanto com as Artes quanto com a História começou a crescer, a amadurecer. Foi a partir de então que me propus a sempre utilizar obras de arte como base para meus trabalhos acadêmicos e para analisar diversas conjunturas, tanto do passado, quanto do presente:
Fig. 4
Vincent van Gogh, Noite Estrelada sobre o Ródano, 1889.
Pouco se sabe, de fato, de artistas que "nasceram" com um dom já pronto para o sucesso, menos ainda se pode crer que o reconhecimento de seu fazer artístico acontecerá sem exigir toda força mental e manual, toda abnegação e dedicação necessária a qualquer empreendimento humano. Os exemplos são muitos:
- Picasso passou frio e fome na Espanha e em Paris durante anos, mas não deixou de estudar e de se dedicar a avançar em seu fazer artístico segundo suas próprias convicções.
- Goya, enquanto se ateve aos sabores da vida na corte, era mais um pintor entre muitos. Mas após sofrer de uma grave enfermidade, que quase o matou, sentiu os devaneios inerentes aos males físicos se tornarem aliados de uma produção artística peculiar e surpreendente.
- Por fim, Van Gogh, em sua infância e juventude, destacou -se como dedicado estudante e familiarizado com, pelo menos, três línguas. Quando adulto, tornou-se um "cão de pelo duro", como dizia, maltrapilho e doente para conseguir comprar seus instrumentos, telas e tintas e continuar, no decorrer de longos e dolorosos 10 anos, a aprimorar suas obras. Só não esperava que sua "obra maestra", Noite Estrelada, seria realizada no interior de uma cela de hospício, da qual, por entre as grades da janela, vislumbrou o céu noturno que o inspirou.
São casos extremos, óbvio. Mas saibam que a genialidade sempre cobra um alto preço, vence quem tem a coragem de pagá-lo. Na arte, como na vida, não há espaço aos ambiciosos preguiçosos.
***
Pois é, em 2009, meu destino estaria para sempre ligado não só à História como também à Arte. Enquanto vivia as felicidades e as agruras da graduação em História, embrenhei-me no mundo acadêmico das Artes. Apaixonei-me por História da Arte e graduei-me em História com uma evidente tendência a atuar como Historiadora da Arte. Ao longo da graduação, exercitei minhas apreensões das leituras na produção de artigos acadêmicos a respeito de História da Arte. Depois de idas e vindas, publiquei alguns e aprendi muito com todos.
Mas, como estudar e ser mãe? A tarefa nunca foi fácil. Abnegação é o termo que mais se encaixa a essa realidade, desligar-se de outras coisas e se importar com os maiores tesouros que possui, seus filhos e livros. No início, desde o nascimento da minha filha e, dois anos depois, do meu filho, afastei-me um pouco dos estudos devido aos labores extenuantes, mas necessários àquele momento e aos pequeninos tesouros sob minha responsabilidade.
Pois bem, um dos grandes motivos para eu conseguir me dedicar às duas atividades, estudar e escrever, foi a informática e a internet. Sim, estes instrumentos de trabalho e de pesquisa foram os meios pelos quais pude manter-me em casa, presente e, ao mesmo tempo, atualizar-me, estudar, escrever, progredir. Inclusive, agradeci publicamente a liberdade que estes tempos hodiernos me proporcionaram:
Fig. 5
Revista Aventuras na História, 2007.
Fig. 6
Jornal A Gazeta, 13 de agosto de 2007.
O computador e a internet se tornaram uma porta de acesso a um mundo longe da cozinha ou de crianças cheias de energia. Este equipamento (o computador) e o meio de comunicação que disponibiliza (a internet) permitiram que eu não tivesse que esperar meus filhos crescerem para me dedicar aos estudos ou a uma profissão, nem os deixar com outras pessoas - se bem que não fui merecedora de tal vantagem. Por viver na era da informática e da inclusão digital, utilizei a inclusão digital como um infinito meio de adquirir e trocar conhecimento sem sair de casa ou desgrudar os olhos de meus filhos. Basta organizar os horários para sobrar um tempinho para meu bom amigo computador e suas 1001 utilidades.
Depois de mais de uma década de dedicação aos estudos, continuo a pesquisar e consegui fazer disso meu “ganha pão”. Filhos já quase adultos, sinto-me um pouco aliviada e posso me dedicar mais ao “meu bom amigo computador”. Haja vista nossa realidade, tempo de pandemia, quem diria! Enfermidade que se dispersa pelo ar e, cerca de meio ano depois de descoberta, ainda apavora o mundo todo. Mundo que se viu de ponta cabeça, à mercê de uma nova ordem que pede o isolamento social, a vida no lar, o distanciamento de atividades coletivas.
Como se pode imaginar, minha vida não mudou tanto, visto que já tinha que ficar cerca de 7 horas diárias lendo ou escrevendo. Mas o resto da família sentiu, e muito. E lá está a mãe para dar conta do recado, tentar, de novo, salvar o dia enquanto o tempo urge e as leituras e pesquisas continuam:
Fig. 7
Enquanto eu estudo, eles dormem. Enquanto escrevo, eles dormem. Mas se estou na cozinha, eles não dormem de jeito nenhum, ficam ao meu lado, de prontidão.
Fig. 8
Oportunidades perdidas, por uma razão ou outra. Metas cada vez mais difíceis de alcançar. Obstáculos que se tornaram muralhas quase intransponíveis. Por fim, os males físicos que atormentam e podem destruir tudo, lenta ou rapidamente. Assim tem sido os dias da humanidade em meio à pandemia.
Contudo, otimista que sou, e de acordo com muitas experiências desagradáveis ao longo da vida, aprendi que, sob os males e perdas inerentes à vida humana, subjaz novas oportunidades. Cabe a cada um reconhecê-las, caso contrário, afogará no mar do desespero.
Eu gosto muito de livros, nota-se. E, por isso, uma das minhas alegrias é adquiri-los. Mas, algumas obras não mais estão disponíveis. Procuro "Rousseau e a Revolução", de Will & Ariel Durant há anos, obra rara, não existe no mercado, nem de segunda mão, a não ser por um preço que excede minha capacidade financeira. Pois bem, a contragosto, procurei pela versão em língua estrangeira e a comprei. Sem muitas esperanças, confesso, pois, ainda estava magoada por não conseguir completar a coleção "História da Civilização". Para meu espanto e alegria, chegou ontem este volume espetacular em inglês, com capa dura e minimalista. É uma austeridade tão evidente que se torna belíssima, de encher os olhos por sua simplicidade.
A adversidade nos prega surpresas, cabe a nós tentar manter a calma e buscar soluções. Caso não as encontre, aceite o fato, apegue-se ao que possui e esqueça o que não pode ter.
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Nessa vida de reclusão e estudos, procuro certas virtudes com muita persistência. De fato, nem sempre as encontro, mas a busca não cessa nunca. Afinal, educar os filhos e escrever requerem as mesmas coisas: paciência e perseverança, visto que os resultados são tão lentos quanto a temporalidade sobre a qual Fernand Braudel[2] escreveu suas obras, a longa, a longuíssima duração. Isso se reflete na pesquisa: a diferença entre um escritor acadêmico em relação aos outros é a necessidade de sempre, sempre mesmo, provar o que escreve. Para isso, deve ter em mente uma quantidade acima do normal de leituras realizadas para que possa, de fato, asseverar de onde a ideia provém: de você mesmo, a partir de conclusões que tirou depois de suas leituras; ou de algum autor específico. Isso dá TRABALHO; é um serviço LENTO; exige demasiada PACIÊNCIA.
Para um texto ser chamado de SEU, ler bastante. Ao escrevê-lo, afastar-se de tudo que leu e fazer a mente funcionar. Resgatar a memória, enriquecer as ideias com palavras que me atraem, usar recursos de outros saberes que, no decorrer da escrita, surjam como tesouros escondidos que darão um brilho particular à produção.
Neste momento, meu único recurso deve ser o dicionário.
Só depois de me dedicar a escrever por mim mesma, contando, ressalto, apenas com minha memória, é permitido voltar aos autores que me inspiraram para que sejam lembrados como os motivadores de minhas deduções.
A busca por imagens é outro agravante. Entre escrever a tese e inserir as devidas obras de arte nela, de fato, lidar com as imagens é tão ou mais difícil que compor o texto. O bom Historiador da Arte deve, no mínimo, atentar para as cores, conferir as referências em livros, o formato, etc. Porque, acreditem, o Google não sabe de tudo. Na verdade, ele te engana direitinho.
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Em meio a livros e sites, a vida do lar segue seu fluxo ininterrupto. Os horários são determinados e, nesses tempos de confinamento, todos os olhares e necessidades da família se voltam para aquela que precisa escrever uma tese! A mãe. Nisso, respira-se fundo e, com satisfação sigo para os dotes culinários. Contudo, advirto, dona de casa hodierna faz almoço com a TV ligada no Smithsonian Channel e não subestime uma mulher que, nos tempos hodiernos, sabe o que significa hodierno sem consultar o dicionário:
Fig. 9
Mais um jantar elaborado.
***
Lembrei, de um professor de História que parecia uma enciclopédia ambulante. Sabia todos os dias, eventos, datas, personagens de cor e os listava durante horas. A lição é a de que o historiador não pode ficar preso a "seu mundinho", seja ele qual for. Se não expandir seu olhar, se tornará aquele que se intitula especialista, mas, de fato, não é. Nesses tempos de reclusão, aproveitemos para abrir nossos corações e mentes para outras possibilidades de pesquisa e para a criação de nossos filhos. René Descartes já dizia que “bem viveu quem bem se escondeu”, se “escondidos” estamos, cabe a nós, mulheres cientistas procurarmos os meios para minimizar os impactos negativos e maximizar os positivos.
Separei uma estante só para os livros que ainda não li, mas preciso ler. Assim, "toco o terror" comigo mesma e não "durmo no ponto". Mulher como eu não tira férias, não tem folga, muitas são assim. Enfim, sigo feliz nesse doutorado em clima extremo e situação adversa.
***
Notas: [1] BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru-SP: EDUSC, 2004, p.11. [2] BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânicona época de Felipe II. 2 v. São Paulo: Martins Fontes, 1983; BRAUDEL, Fernand. As estruturas do cotidiano: Civilização material, Economia e Capitalismo (Séculos XV-XVIII0. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
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