Bárbara Dantas
* Se precisar citar, tê-lo como referência, seguir:
DANTAS, Bárbara. “Iconografia política: o céu e as calças de Nicolas-Antoine Taunay.” Revista 19&20, v. XV, n. 2, jul.-dez. 2020, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/artistas/bd_nat.htm e https://www.barbaradantas.com/post/iconografia-pol%C3%ADtica-o-c%C3%A9u-e-as-cal%C3%A7as-de-nicolas-antoine-taunay-1750-1830
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Resumo: Nicolas-Antoine Taunay tinha tudo para ter uma vida sossegada junto a sua numerosa família, seus colegas da Academia de Arte de Paris e como renomado pintor, mas, a conjuntura foi deveras complicada. O pintor francês teve que se desdobrar para dar conta de diversas rupturas políticas e sociais: da realeza à revolução francesa, do império de Napoleão Bonaparte ao império português. Este trabalho, portanto, deseja inserir Taunay naquele contexto por meio da análise de sua representação em um retrato feito por um colega de profissão, Julien Léopold Boilly, e em uma paisagem brasileira pintada por ele mesmo. Enfim, a intenção é encontrar nestas duas pinturas como Nicolas-Antoine Taunay encarou a si e ao meio que o rodeava naquele trânsito que foi obrigado a fazer entre Paris e o Rio de Janeiro.
Resumen: Nicolas-Antoine Taunay lo tenía todo para tener una vida tranquila con su numerosa familia, sus colegas de la Academia de Arte de París y como pintor de renombre, pero la situación era realmente complicada. El pintor francés tuvo que hacer todo lo posible para hacer frente a diversas rupturas políticas y sociales: de la realeza a la revolución francesa, del imperio de Napoleón Bonaparte al imperio portugués. Esta obra, por tanto, pretende insertar a Taunay en ese contexto a través del análisis de su representación en un retrato realizado por un colega profesional, Julien Léopold Boilly, y en un paisaje brasileño pintado por él mismo. Finalmente, la intención es encontrar en estos dos cuadros cómo Nicolas-Antoine Taunay se enfrentó a sí mismo y a su entorno en ese tránsito que se vio obligado a hacer entre París y Río de Janeiro.
Abstract: Nicolas-Antoine Taunay had everything to have a quiet life with his large family, his colleagues at the Paris Academy of Art and as a renowned painter, but the situation was really complicated. The French painter had to go out of his way to deal with various political and social ruptures: from royalty to the French revolution, from the empire of Napoleon Bonaparte to the Portuguese empire. This work, therefore, intends to insert Taunay in that context through the analysis of his representation in a portrait made by a professional colleague, Julien Léopold Boilly, and in a Brazilian landscape painted by himself. Finally, the intention is to find in these two paintings how Nicolas-Antoine Taunay faced himself and the environment that surrounded him in that transit he was forced to make between Paris and Rio de Janeiro.
Fig. 1
Julien Léopold Boilly (1796-1874), Nicolas-Antoine Taunay, c. 1825, óleo sobre tela. Museu Castro Maya - Rio de Janeiro. Fonte: [SCHWARCZ, Lilia Moritz et al. Nicolas-Antoine Taunay no Brasil: uma leitura dos trópicos. Rio de Janeiro: Sextante, 2008-a, p. 28]
Este distinto senhor de cabelos já brancos e portando óculos é Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830), o artista sobre o qual esta pesquisa se debruçará. Sua postura altiva, segura de si e nobre demonstra que não cedeu ao brio de sua condição; sabia o valor de sua estirpe e de seu trabalho artístico; além de enfatizar sua relação com a nobreza e a realeza, seus principais mecenas.
Na Europa do século XVIII, diferente de alguns reinos - e, talvez, mais que todos - a França dedicou um apreço especial às Artes. Afinal, o que seria do imaginário em torno do Ancien Régime - dos reis absolutistas e suas cortes - sem os registros visuais feitos por artistas que se submeteram de bom grado às normativas do grupo social que fez da imagem sua maior aliada como mantenedora do poder político? Nesse caso, assim como alguns historiadores franceses daquele período eram conhecidos como “especialistas da narrativa” e seu ofício era o de “fabricar a imagem” do rei e do nobre (BAZIN, 1979, p. 446), os pintores contemporâneos a eles eram peritos em “narrativas visuais”, ou seja, em “criar imagens” destes mesmos reis e dos integrantes de sua corte.
Nota-se na Fig. 1 o valor de sua profissão, qual seja, a de pintor. Isso é visível na paleta em sua mão e na tela que está à sua frente. Nas Artes, o nome destes elementos iconográficos presentes em pinturas são “atributos”, conceito utilizado por Erwin Panofsky (1892-1968) em seu livro, Significado nas artes visuais (1955, p. 61). Os atributos mostram as insígnias da figura central e podem simbolizar várias coisas, desde sua posição social, passando por suas quimeras, até chegar ao seu ofício. Quanto ao retrato de Taunay, basta “olhá-lo verdadeiramente”, assim nos ensina outro teórico das Artes, Georges Didi-Huberman, na obra O que vemos, o que nos olha (2010).
Nesse sentido - do envolvimento entre História e Arte - vejamos a análise de François Fénelon (1651-1715), historiador francês, em seu Projet d’un traité sur l’histoire (1714), na qual asseverou que o historiador e o pintor buscam as mesmas coisas, mostrar a verdade e os costumes:
Le point le plus necessaire et le plus rare pour un historien, est qu’il sache exactement la forme du gouvernement et le détail des moeurs de la nation dont il écrit l’histoire, pour chaque siècle. Un peintre qui ignora ce qu’on nomme ‘il costume’ ne peint rien avec verité (FÉNELON, 1714, p. 84).
[O ponto mais necessário e raro para um historiador é que ele conheça exatamente a forma de governo e os detalhes dos costumes da nação cuja história ele escreve, para cada século. Um pintor que ignora o que é chamado de ‘costume’ não pinta nada com verdade] tradução: Bárbara Dantas.
Então, se o retrato de Taunay sugere um costume da época, vejamos os significados de alguns dos elementos da iconografia da pintura. Vestido à moda da época, o casaco provavelmente é cortado na altura da cintura e tem uma cauda longa e quadrada nas costas, chegando até os joelhos, devido ao caimento que faz sobre a cadeira almofadada. Ademais, sua escolha estética e formal nas Artes pode ser enfatizada por outros adereços, pois segundo a historiadora da moda, Melissa Leventon, é um “traje masculino neoclássico”: a grande dobradura para baixo em seu casaco é adornada com botões similares a madrepérola e de acordo com os abotoamentos duplos, logo abaixo e fechados; a gravata deve ser de linho engomado, branca e envolve seu pescoço em intricadas voltas; o colete também é branco e o costume da época regia que devia ser curto, justo e com as golas altas e levantadas (2009, p. 178-179), assim como mostra a imagem. Ou seja, um pintor neoclássico e seu “traje neoclássico”. Não é coincidência, pois, Panofsky nos ensinou que os elementos que formam um quadro têm sua simbologia e valor.
Mas, o que falta é, por vezes, o que distingue a “mensagem” da pintura. Afinal, Jacques Le Goff (1924-2014), desde sua obra de 1977, História e Memória, propôs um novo olhar sobre as fontes históricas e a abertura para que outros objetos pudessem mostrar sua historicidade. E, cá estamos nós, tentando descobrir o que “os esquecimentos, os hiatos, os espaços em branco” (2013, p. 107) podem revelar sobre a história não de um texto, mas desta obra de arte, desta “fonte histórica visual”.
Nesta pintura, não se veem as meias, altas até os joelhos, típicas das vestes das guardas reais, dos burgueses e até da nobreza. Não se veem, muito menos, as botas de cano alto para a prática da montaria ou do “estilo urbano” popularizado nas ruas de Paris. Portanto, as calças também não são culotes até os joelhos, reputada veste das elites francesas (BOUCHER, 2010, P. 282)). Ao contrário, suas calças seguem até os pés. Ao cabo, também não está presente um dos mais emblemáticos atributos da nobreza e da realeza do Ancien Régime, a peruca (LEVENTON, 2009, p. 176-177; 178-179; 182-183), embora tenha ocorrido uma mudança radical nos usos e nos costumes da sociedade francesa, inclusive da moda, após a Revolução Francesa.
Que homem foi esse que se permitiu “retratar” sem alguns dos atributos que sua dignidade social permitia e determinava? O que ele mostra, não é exatamente o oposto do que é? A resposta pode estar em duas vertentes, uma no plano das ideias (da “longa-duração histórica” defendida por Fernand Braudel (1902-1985) e Jacques Le Goff) e a outra no plano das vivências (da “micro-história”, na qual Carlo Ginzburg é, senão o criador, o disseminador da metodologia que parte de um indivíduo para fazer um apanhado histórico do que o cercava, ou seja, da História de seu tempo). Ginzburg nos apresentou o conceito de “iconografia política” e um método para encontrar “as raízes antigas de imagens modernas” (GINZBURG, 2014, p. 12).
No plano das ideias, o que falta em sua vestimenta acusa sua afinidade - e dicotomia - aos intelectuais do Iluminismo Francês, principalmente, Voltaire (1694-1778) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Sua altivez representada em pintura por um amigo dos círculos “ilustrados” e, também da corte, Julien Léopold Boilly, convida a pensarmos que a categoria dos pintores não apenas se distinguiu sócio e economicamente naquele período e na França. Demonstra o quanto admiravam os pensamentos filosóficos e políticos avessos à “cultura de corte” - expressão cunhada por Norbert Elias (1897-1990) em seu clássico, A Sociedade de Corte (2001, p. 11) - pois a tela sugere que Taunay talvez desejasse distanciar-se dos padrões da nobreza.
No plano das vivências, lembremos que esta pintura foi realizada em 1825, ou seja, alguns anos depois que o pintor voltou da sua estadia no Rio de Janeiro, capital da mais rica colônia do Império Português, o Brasil. Na cidade, morou com a família entre 1816 e 1821, nos quais interagiu com uma realidade totalmente diversa da sua em Paris. Viveu sob um sistema escravocrata e uma corte que pouco se importou com seus talentos neoclássicos. Os ideais iluministas não cabiam ali, nem as benesses que estavam à sua disposição na França monárquica, revolucionária ou imperial. Bem, parece que as experiências na “terra brazilis” mudaram as perspectivas do sexagenário pintor francês.
Fig. 2
Nicolas-Antoine Taunay, D. João et dona Carlota Joaquina passant la Quinta de Vista près du Palais de São Cristóvão, c. 1816-1821, óleo sobre tela. Perdida no incêndio do Museu Nacional.
O Brasil era terra mais “imaginada” que, de fato, conhecida quando Taunay começou a pintar paisagens italianas para a Academia Real de Pintura e Escultura de Paris, a partir de 1784 (SCHWARCZ, 2008, p. 136). Para analisarmos aqueles registros do Novo Mundo, Ronald Raminelli nos conta que, “em geral, as imagens informam sobre cores, formas anatômicas e trajes, enquanto as memórias descrevem a história dos povos, costumes e governo” (2008, p. 227).
Desde o séc. XVI as caravelas portuguesas trouxeram ao Brasil artistas, intelectuais e cientistas europeus na busca por desvendar as maravilhas da exótica paisagem. O interesse deles, apesar de variado, procurou registrar a escravidão, a arquitetura e a natureza exuberante (COUTO, 2007). Johann Moritz Rugendas (1802-1858), por exemplo, pintou o Brasil em aquarela ou a óleo. Seguiu a prática costumeira de deixar levar sua pena de forma mais livre nas gravuras que nas telas: assim, evitaria um provável desagradado da elite cortesã que nem sempre tinha afeição a “retratos” fieis da realidade, pois preferia pinturas mais idealizadas que realistas.
Os registros das paisagens, da fauna e da flora, das gentes e dos costumes do Brasil mostram que a “verossimilhança” (FONTES FILHO, 2012, p. 12) - presar pela verdade ou por uma plausível semelhança com ela – não era unívoca. A Arte pictórica é a representação de emoções, afinal, para Didi-Huberman, “a pintura pensa” (2012, p. 19). Entre a mimese (LAGO, 2014, p. 250) das gravuras dos cientistas e a “imaginação excessivamente criativa” dos relatos de viajantes (SCHWARCZ, 2008, p. 24), há o encontro de pré-conceitos europeus com um lugar extravagante.
Assim, o registro visual é similar ao textual, quando se trata de uma memória ou da narrativa de um fato histórico. Aliás, Le Goff critica a ideia de “fato histórico” e de “documento”, pois não são acabados, objetivos ou inocentes. Ambos são manifestações do “poder da sociedade do passado sobre a memória e o futuro” além de estarem submetidos à “construção do historiador” (2013, p. 11). Logo, a pintura também se submete à “construção” do pintor.
Nesse sentido, verifica-se que, nas telas de paisagens de Taunay, sempre existiu um inequívoco favoritismo em relação ao espaço ofertado ao céu, indiferente de onde o pintor estivesse: França, Itália ou Brasil. Mas a sua escolha não foi pioneira ou única. Entre os séculos XVII e XIX, os artistas que se dedicaram aos registros visuais de paisagens deram um grande espaço à abóbada celeste a partir de uma concepção de pintura que, cada vez mais, desejava “a representação de um acontecimento natural da natureza, por oposição à mera ilustração de um evento” (BOCKEMÜHL, 2010, p. 24).
Willian Turner (1775-1851), pintor inglês contemporâneo de Taunay, mas pouco conhecido em Paris até a década de 1860, atingiu o sublime em suas pinturas. Outro pintor inglês de paisagens, John Constable (1776-1837), teve suas telas exibidas nos Salões de Paris desde 1824 (SCHWARCZ, 2008, p. 292). Turner se notabilizou ao pintar a fúria da natureza em tempestades que enchiam o céu de tons variados entre cinza e negro, bem como de noites e dias, nos quais a lua e o sol se alternavam em diferentes matizes de azul e amarelo para cobrir as suas telas de luz. Já Constable, foi adepto de descampados com árvores frondosas ao fundo e pontuadas por bois, sob um céu soberano, obras bucólicas e similares ao estilo de Taunay.
Mas, de novo, vamos refletir a respeito do que falta em uma fonte histórica, em uma pintura. Nesta tela de Taunay, o céu ocupa a metade superior da obra, logo, há uma separação praticamente igual entre elementos figurativos (árvores, animais, pessoas, etc.) logo abaixo de uma “arte abstrata” que Didi-Huberman problematiza em sua obra, Diante do tempo: História da arte e anacronismo das imagens. O pesquisador tenta descontruir a ideia de “movimentos artísticos” restritos a recortes temporais e geográficos determinados por teóricos e historiadores da Arte (2015, p. 17).
O céu se mostra abstrato porque, em sua composição formal (das formas) não sugere formato algum. Afinal, este céu (acrescido da luz do sol desfocada que surge detrás das montanhas ao fundo, logo acima da representação do Palácio de São Cristóvão, e das nuvens também disformes) é um completo nada! Vê-se, apenas, um imenso céu e diferentes tons de cores (do branco, passa pelo azul e chega ao cinza). Escolha que, naquele período, tinha indissociáveis significados social e artístico: a ínfima e efêmera humanidade perante uma natureza imensa, poderosa, onipresente e eterna (LAGO, 2014, p. 35).
Qual o porquê deste grande espaço pictórico dado ao nada? Isso pode causar certa aversão aos amantes das composições pictóricas (imagem em geral, pintura em particular) plenas de elementos figurativos.
Foi, na verdade, o valor ao que não estava aparente e aquilo que transmitisse uma mensagem mais implícita que objetiva. Sentimental, diríamos, pois ligada ao sublime (vide William Turner) e ao pitoresco, vertentes artísticas em voga na Europa de então, mas que tiveram suas “versões” brasileiras. Jean-Baptiste Debret (1768-1848), foi artista que mais se destacou no gênero pitoresco com sua coleção de aquarelas realizadas no Brasil. Além de sua obra maestra, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834), Debret fez parte de um “trabalho particularmente intrigante” descoberto no ano de 2010 em uma coleção francesa. Hoje, faz parte da Coleção Brasiliana (LAGO, 2014, p. 64-65).
Se regressarmos aos séculos XVII e XVIII, observaremos que as pinturas de paisagens brasileiras que chegaram até nós, de modo geral, deram grande espaço ao céu, espaço parecido ao que Taunay deixou na tela que estamos analisando. Além disso, esta prática se perpetuou até chegar aos anos finais do XVIII e primeiras décadas do XIX. A arte da pintura e suas congêneres, por vezes, manifestam-se mais pela via da longa-duração que da curta-duração histórica, mesmo quando nega a sua historicidade - como as vanguardas históricas das primeiras décadas do século XX.
Frans Post (1612-1680), o pintor holandês de imagens do nordeste brasileiro, é emblemático nesse sentido. A Coleção Brasiliana destaca a vida e obra deste pintor com preciosas análises de suas obras (LAGO, 2014, p. 22-23). Post também é destaque na Coleção do Instituto Ricardo Brennand, de Recife (LAGO, 2010). Estas coleções, por meio de seus catálogos, oferecem um contato estreito e confiável com as obras. As referências e análises de especialistas mostram que há uma relação de longa-duração histórica entre as obras de Frans Post com as de Nicolas-Antoine Taunay. Suposição que encontramos a partir de algumas breves considerações de Lília Moritz Schwarcz em O sol do Brasil (2008), entre elas: “a crítica francesa já nesse momento reconhecia em Taunay a inclinação pela pintura holandesa, tanto a de gênero como de paisagem” (2008, p. 135) Especialmente, aquelas do Século de Ouro da Arte Holandesa, o XVII (DANTAS, 2012).
O céu holandês - de Post - adiantou-se ao de Taunay: “Devido ao jogo de cores que o imenso céu holandês permite, a paisagem constitui o modo de expressão mais verdadeiramente lírico” (ZUMTHOR, 1989, p. 242). Claudine Lebrun-Jouve, responsável pelo Catalogue Raisonnée Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830), publicado na França em 2003, afirmou que: “Il est le second peintre à avoir représenté le Brésil, après Franz Post” [ele foi o segundo pintor a representar o Brasil, após Frans Post] (2003, p. 79) tradução: Bárbara Dantas.
Ademais, Lebrun-Jouve afirmou para o jornal Folha de São Paulo, em 2008, que “Taunay foi melhor pintor que Debret” (STRECKER, 2008). Sua visita ao país ocorreu em meio aos eventos e lançamentos que fizeram parte das Comemorações pelo Bicentenário da Chegada de D. João e da Família Real ao Rio de Janeiro. Um deles é o catálogo da exposição promovida pelo Museu Nacional de Belas Artes e pela Pinacoteca do Estado de São Paulo: Nicolas-Antoine Taunay no Brasil: uma leitura dos trópicos (SCHWARCZ, 2008-a).
Também em 2008, o Brasil conheceu as aventuras da Corte Portuguesa entre 1807 e 1808, o Período Joanino e os artistas franceses que vieram para o Brasil em 1816. Lília nos contou que por aqui viveu um pintor tão ou mais talentoso que Debret: Nicolas-Antoine Taunay, o pintor francês que não se entendia com o “sol do Brasil” e era difícil pintá-lo, pois preferia o sol de Roma, o céu da Itália (SCHWARCZ, 2008).
Contudo, a tela da Fig. 2, este olhar de Taunay sobre a cidade do Rio de Janeiro não está mais entre nós (PATERNOSTRO, 2018). Um incêndio foi a consequência inevitável de um completo descalabro de gestão museal que, com certeza, deve ter horrorizado outros países que primam pelo abrigo seguro de seus objetos artísticos e históricos.
Milhares de itens do Museu Nacional se transformaram em cinzas. Este museu, na época de Nicolas-Antoine Taunay, era o Palácio de São Cristóvão, também chamado Quinta da Boa Vista. Um texto anônimo publicado pela Typographia Astrea (Rio de Janeiro, 1826) deixou para a posteridade a empolgada opinião de um visitante do palácio a respeito do quadro: “Como he bela Paisagem! Que arvores, que frescura, que colorido; estava vendo a Quinta do Monarcha. Taunay se deo a imortalidade: viverá no Rio de Janeiro sempre que existir este seo Painel” (PATERNOSTRO, 2018).
A historiadora de arte, Zuzana Paternostro, conheceu esta pintura em 1972. Ao realizar o levantamento do acervo histórico-documental das dependências do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre os anos de 1986 e 1988, considerou a pintura excepcional por dois motivos: era de grandes proporções e a única deste artista no Museu Nacional. Foi ela também que apresentou a tela à Lebrun-Jouve, entre 1988 e 1989, ocasião na qual a pesquisadora francesa já estava criando o catálogo da vida e obra de Nicolas-Antoine Taunay (2018).
D. João et dona Carlota Joaquina passant la Quinta de Vista près du Palais de São Cristóvão não está entre as obras brasileiras mais destacadas por Lebrun-Jouve no seu compêndio, mas ganhou uma reprodução em preto e branco e alguns comentários da especialista: nas referências à obra, afirma que é possível ver a assinatura de Taunay em uma caixa no barco e deixa a Théodore (1795-1881), um dos filhos de Taunay, “a descrição poética da obra” (LEBRUN JOUVE, 2003, p. 288):
Je vois de la ville un groupe qui s’avance;
Inquiets courtisans qu’anime le devoir
Vers la royale main qu’ils baisent chaque soir.
Les brillans cavaliers, et leurs suites nombreuses,
Les chars volent, suivis par des traces poudreuces;
Et la pont, ébranlé sous l’azur rayonnant,
Sent du feu des coursiers le passage sonnant (TAUNAY, 1830, p. 70).
[Vejo, da cidade, um grupo avançando;
Inquietos cortesãos que o dever anima
Em direção à mão real que beijam a cada noite.
São os brilhantes cavaleiros e os cortejos numerosos,
As carruagens voam, seguidas por traços poeirentos;
E a ponte, abalada sob o azul radiante,
Revela, através do fogo dos corcéis, o som da passagem] tradução: Bárbara Dantas.
Na esperança de que a tragédia não se torne mais um silêncio da História, que o Museu Nacional seja eternamente relembrado como perda lamentável e falha irrepetível.
Depois dessa lembrança em nada pitoresca, muito menos agradável, voltemos a esta mesma pintura, porém, com atenção especial ao que se encontra abaixo do firmamento, no primeiro plano da pintura. Para isso, vamos dirigir nossos olhares, novamente, para as calças. Primeiro, às calças do pintor, a personagem indicada pela seta. Em seguida, às calças de D. João, a figura masculina que conduz a carruagem.
Na análise de alguns elementos da Fig. 2 destacamos a escolha de Boilly por retratar Taunay usando calças compridas. Nota-se no detalhe abaixo, contudo, que as calças desta tela de Taunay, datada entre os anos de 1816 e 1821 (já que não se possui documentação que comprove um período mais específico para a sua produção) são diferentes de seu retrato de 1825.
Fig. 3
D. João et dona Carlota Joaquina passant la Quinta de Vista près du Palais de São Cristóvão. Detalhe.
Culotes até os joelhos, completados por longas meias na cor branca, eis o paralelo buscado por Taunay entre o vestuário do monarca e o seu. Indício que supõe um desejo do pintor em mostrar que ele e o rei faziam parte do mesmo círculo social, aquele da corte. Devido a essa similaridade nas roupas - presente nesta obra e não em outra - podemos concordar com Schwarcz de que a obra “poderia render-lhe algum crédito político” (2008, p. 246). Mas, subindo um degrau na análise da imagem, afirmar que o pintor ofertou essa tela para D. João, já que era a única obra do pintor no Palácio de São Cristóvão e a iconografia - inclusive as calças - é composta por elementos que, acreditava Taunay, agradaria ao gosto estético do soberano português.
Subamos mais um degrau e notaremos outro aspecto que nos escapa: ao contrário do argumento de Lília de que o pintor - estrategicamente - decidiu morar na Tijuca, pois estava localizada a meio caminho do Palácio de São Cristóvão, esta obra pode ter sido realizada antes do pintor ir morar com a família ao lado da cachoeira da floresta da Tijuca. Até então, ele e seus colegas franceses ainda esperavam por maiores benesses reais e, quiçá, a efetiva criação da Academia de Artes. Depois disso, deveras chateado, principalmente pelo fato de não ter sido ele nomeado para o cargo de diretor da Academia, após o retorno à Europa, onde morreu pouco depois, Joachim Lebreton (1760-1819), o chefe da missão. Para piorar sua mágoa, o nomeado não foi nenhum dos franceses, mas o português Henrique José da Silva (1772-1834).
Taunay se entregou aos afazeres campestres, afastou-se da corte e pintou poucas obras. Uma vida imersa nas tarefas em torno da produção de café e das esporádicas pinturas que realizou, cerca de 25 obras conhecidas (Itaú Cultural, 2020). Para Rodrigo Naves, “a nova liberdade que Taunay encontrou aqui, sem precisar corresponder a expectativas ou louvores, lançou-o a comedidas aventuras” (2008, p. 195). Portanto, a mudança para a Tijuca não teria sido para se aproximar, mas para se afastar do rei.
Em vista disso, a ideia de verdade é, na Arte e na História, subjetiva e individual, logo, para analisá-las, resta ao pesquisador submeter-se a estas condições e nunca deixar de lado a análise crítica da fonte, um historiador não se cansa de questionar.
O que importa destacar é o caráter sociopolítico subentendido destas pinturas que eram e ainda são, costumeiramente, arguidas apenas em relação aos seus motivos estéticos e formais. Didi-Huberman lembra que é preciso abrir caminho à “iconologia do intervalo” proposta por Aby Warburg (1866-1929), quer seja, a junção entre o último estágio do método de análise iconográfica de Panofsky, “iconologia”, aliada à ideia de “intervalo” como espaço temporal, mas também, psíquico, espacial e informe, além de material ou imaterial, visível ou invisível (2015, p. 126).
Valer-se do formalismo (método de análise de imagens que prioriza as formas, as cores e associam as obras, inevitavelmente, a um movimento artístico), ao cabo, pode gerar análises distorcidas ou pouco aprofundadas. A título de comparação, o formalismo na Arte é como o positivismo na História, engrandece em demasia o acontecimento e o personagem, em detrimento dos fatos e das causas. Além de, por vezes, ferir a verdade. Por isso, Didi-Huberman esclarece que: “A missão histórica da arte, em nosso ponto de vista, é o estudo das condições que engendram as obras, e não em um simples alinhamento histórico e descritivo das imagens” (2015, p. 195).
CONCLUSÃO
Com esta proposta, seguimos uma sucessão de temáticas, conceitos e métodos com o intuito de organizar as ideias e possibilitar o aprofundamento de uma pesquisa que seja, ao mesmo tempo, clara e bem embasada no que tange às Artes e à História.
Algumas das questões levantadas pela autora de O Sol do Brasil é a base sobre a qual esta pesquisa trabalhou. Por isso, a pesquisa foi mais crítica que narrativa. Pretendeu fazer uma revisão dos métodos de análise de imagens, além de levar adiante as propostas de pesquisadores da atualidade para o uso da arte como fonte histórica e como fundamento subliminar de um pensamento sociopolítico que nunca esteve distante das obras de arte, basta procurar um pouco mais.
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